quarta-feira, 25 de abril de 2018

Aécio ficou só, enquanto Dilma é aplaudida

Por Mário Magalhães, no site The Intercept-Brasil:

O escritor e jornalista Gabriel García Márquez bronqueava com títulos jornalísticos que parafraseiam títulos de livros dele. O colombiano depreciava-os como um velório da criatividade. No princípio, vá lá, talvez soassem como sacadas espertas as variações em torno de Cem anos de solidão, Crônica de uma morte anunciada, O general em seu labirinto e Ninguém escreve ao coronel (tradução da edição brasileira, com inversão do sujeito, melhor do que o original em castelhano El coronel no tiene quien le escriba). Logo as citações se repetiram demais, quedaram previsíveis, senilizaram.

Aécio Neves experimenta hoje sua maior solidão, sua ruína era anunciada, o senador agoniza em seu labirinto, quase ninguém lhe escreve ou procura-o. Mas seria mediocridade abusiva apelar no título ao clichê maldito por Gabo. Lembrei-me de outras obras, dos anos 1960, embora com personagens principais sem semelhanças com o candidato presidencial sobrepujado em 2014: o filme de faroeste E o bravo ficou só, com Charlton Heston, e o livro Em agosto Getúlio ficou só, de Almir Matos.

Aécio nunca estivera só. Raros figurões do poder foram tão adulados no Brasil do século 21 quanto ele. Sem que o senador tenha sofrido condenação judicial, nem em primeira instância, os bajuladores se escafederam. Alguns, também no jornalismo, reeditaram um expediente maroto para copidescar suas biografias: quanto mais adocicada a sabujice de outrora, mais acres são as críticas quando os fatos se impõem.

Em 17 de abril, a 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal tornou Aécio Neves réu pelos alegados crimes de corrupção passiva e obstrução de Justiça. O senador defendeu-se: “Estou sendo processado por ter aceitado um empréstimo de um empresário, portanto recursos privados, de origem lícita, para pagar os meus advogados. Não houve dinheiro público envolvido, ninguém foi lesado nessa operação”.

Na entrevista, não sobressaíram palavras, e sim a imagem melancólica: o abandono do neto de Tancredo por seus correligionários. Nenhum papagaio conhecido pousou em seus ombros, nenhum tucano de plumagem vistosa posou ao seu lado. Nem a tintura capilar renovada disfarçou a perda de viço de Aécio. Ele ficou só.

Na saída do plenário do Senado, o peessedebista Ricardo Ferraço esquivou-se do antigo candidato cuja campanha coordenara quatro anos atrás no Espírito Santo: “Os fatos são extremamente graves. O Supremo julgou adequadamente”. Outros senadores tucanos se alhearam do acusado. “Este é um assunto privado do senador Aécio Neves e nada tem a ver com o partido”, driblou Roberto Rocha, do Maranhão. Ataídes Oliveira, do Tocantins, bisou a ladainha: “É um problema pessoal do senador Aécio”.

Nenhum tiro teve calibre tão alto como o do ex-governador Geraldo Alckmin. O virtual concorrente do PSDB à Presidência disparou, ao abordar possível postulação eleitoral do réu: “Claro que o ideal é que não seja candidato, é evidente”. Sem mandato parlamentar, Aécio perderia o escudo do STF, cuja lerdeza para julgar volta e meia se confunde com salvo-conduto.
Cusco moribundo
A abertura da ação penal contra Aécio prestou-se a argumento para a propaganda de que a Justiça não distinguiria colorações políticas, seria igual para todos. O pau que dá em Chico (Lula) daria em Francisco (Aécio). Mera ilusão.

Ao receber a denúncia do Ministério Público Federal, o STF feriu, se não um cachorro morto, um cusco moribundo. Desde a delação de donos e executivos do grupo controlador da Friboi, Aécio fora descartado para corridas de fundo. Sua ambição passou a ser escapar do xilindró. Já não era protagonista.

Dilma Rousseff, ao contrário, ocupava a Presidência ao ser deposta pelo Legislativo com a cobertura escancarada do Judiciário. O Supremo assegurou Eduardo Cunha na Câmara até que o muso, cara e coração do impeachment consumasse o golpe. O STF vetou a última cartada política e administrativa de Dilma – a nomeação de Lula como ministro – para permanecer no cargo para o qual havia sido ungida por sufrágio popular. Dilma presidente não equivale a Aécio decaído.

É improcedente a comparação de Lula, objeto de condução coercitiva ordenada por Sérgio Moro, com Aécio, tipo imune a conduções coercitivas e dado a confraternizar em público com o juiz de Curitiba. O ex-presidente foi preso no momento em que as pesquisas de opinião o reconheciam como favorito na eleição de outubro ao Planalto.

São animais distintos o que esbanja saúde e late altivo e aquele anêmico, desamparado como cão sarnento até por velhos companheiros. Sem falar na ausência de provas convincentes no processo de Lula. Parte da imprensa que endossou sentença e acórdão agora se refere ao “triplex atribuído a Lula”. Antes, bancava sem cerimônia que o proprietário do imóvel do Guarujá é ou era o ex-presidente. Ato falho ou copidesque de biografia?

É Alckmin quem está no jogo do qual Aécio foi eliminado, a despeito de medida amiga do STF em 2017, com voto de desempate da ministra Cármen Lúcia. O presidente nacional do PSDB e ex-governador de São Paulo expõe a vida como ela é. Executivos da Odebrecht narraram que a empresa presenteou Alckmin com R$ 10,7 milhões. Se o padrão adotado com petistas prevalecesse, o dito “Santo” das planilhas da empreiteiraseria alvo da operação Lava Jato.

Mas a Procuradoria Geral da República recomendou que o caso fosse classificado como eventual crime eleitoral - caixa dois -, legalmente menos grave que propina. A PGR combateu o habeas corpus que impediria a prisão de Lula antes do esgotamento dos recursos no processo do triplex. O Superior Tribunal de Justiça decidiu que a investigação sobre o suposto agrado da Odebrecht deve correr, para gáudio de Alckmin, na Justiça Eleitoral.

Tucanos e petistas conservam identidades em muitas bandalheiras, mas não nos modos como o Judiciário os trata.

Aeroporto de Cláudio
Ao dar o chega-pra-lá em Aécio, Alckmin balaqueou: “Somos bem diferentes do PT”. Trocando em miúdos, o PSDB não transigiria com trambiques. Para dar razão ao postulante presidencial, seria necessário ignorar a campanha de 2014. Em julho daquele ano, o repórter Lucas Ferraz revelou as tramoias no uso do aeroporto de Cláudio, município de Minas. Como reagiram os tucanos? Negando as irregularidades bandeirosas e incensando Aécio.
Mais atrás, a reeleição de Fernando Henrique Cardoso em 1998 havia sido possível graças à compra de votos de deputados para referendar a emenda constitucional que liquidou o mandato único de presidente.

Quem inaugurou o mensalão foi o PSDB, pioneiro no esquema que o PT expandiria e azeitaria. Só agora, duas décadas depois do toma-lá-dá-cá, e onze após a primeira acusação formal do Ministério Público, chega ao fim o processo contra Eduardo Azeredo. Com Lula, a Justiça foi Senna. Com o ex-governador, Rubinho. Certo jornalismo chama um mensalão de mineiro, e não tucano, e o outro de petista. A seletividade não é exclusiva de juízes.

Há quem se queixe da falta de informações anteriores sobre o comportamento de Aécio. Como se os relatos sobre o aeródromo de Cláudio e outros episódios obscuros não tivessem sido divulgados em 2014. Muita gente só lê, ouve e vê o que quer.

Tinha sido assim no tempo de Fernando Collor de Mello candidato e presidente. Quando as manchetes estamparam a ladroagem gerenciada por Paulo César Farias, uma turma choramingou: como se poderia saber antes quem de fato era Collor? Hipocrisia. Na campanha de 1989, a repórter Elvira Lobato escrutinara as jogadas colloridas em Alagoas. Não faltou aviso.

O infortúnio de Aécio tem sabor mais apimentado porque gravações em áudio e vídeo documentaram as armações. Em março do ano passado, no Hotel Unique, em São Paulo, o senador catou R$ 2 milhões com o empresário Joesley Batista. Indicou, para buscar o dinheiro, seu primo Frederico Pacheco de Medeiros. “Tem que ser um que a gente mata ele antes de fazer delação”, disse o tucano. Não falaram em transferência bancária convencional. A Polícia Federal filmou a entrega de R$ 500 mil em notas de R$ 50.

Depois de Aécio ser declarado réu, o acerto filmado pareceu marola diante da ressaca de novidades. De acordo com Osmar Serraglio, ex-ministro da Justiça, o tucano pressionou pela nomeação de determinado delegado federal para apurar o caso. Joesley informou ter desembolsado por dois anos um mensalinho de R$ 50 mil a Aécio. Registrou que na campanha de 2014 lhe repassara R$ 110 milhões. Um chefão da Andrade Gutierrez afirmou que bolaram um contrato com empresa de amigo do senador, no valor de R$ 35 milhões, para transferir recursos a Aécio. Marcelo Odebrecht teria mimoseado o ex-presidente do PSDB com R$ 50 milhões, ofertados por duas construtoras.

Lula insurgiu-se contra a acusação no processo do triplex, foi condenado, e multidões o defendem com gritos de “Lula livre!”. Aécio sustenta que pediu empréstimo pessoal ao capo da JBS, e ninguém o acode, apesar de ele não ter sido nem julgado. Os partidários de um creem em inocência. Os de outro, não. Devem ter seus motivos.
‘A culpa não é minha: eu votei no Aécio’
O destino pregou outra peça, ao tornar Aécio réu exatos dois anos depois da sessão da Câmara que deu sinal verde para o impeachment de Dilma. O obsceno 17 de abril de 2016 em que torturador da ditadura foi homenageado por deputado opositor da presidente torturada na ditadura. A moldura da memória enquadra naquele domingo o sorriso mais arrebatado de Eduardo Cunha. E, nas ruas daquela época, o retrato da faixa “Somos milhões de Cunhas”.

No maio seguinte, na guilhotina montada no Senado, Aécio discursou pelo “Fora, Dilma” e enfatizou valores como “ética” e “correção na gestão da coisa pública”. O mesmo Senado que derrubou Dilma por “pedaladas fiscais” preservou Aécio depois das gravações pornográficas permitidas por Joesley e cupinchas.

Num protesto pelo impeachment, em Belo Horizonte, o senador bravateara: “Basta de tanto descompromisso com a verdade!”. Noutra manifestação, Ronaldo Fenômeno vestiu a camiseta com a inscrição “A culpa não é minha: eu votei no Aécio”.

Em 2014, Aécio se apresentara “resgatando a ética na política”. Ao seu lado, a senadora Ana Amélia o aclamou como “nosso presidente”. Romário paparicou-o como quem “vai lutar pela moralização do esporte”. Bernardinho louvou a luta “por ideais”. Raimundo Fagner elogiou-o como “um brasileiro que gosta do Brasil”. Jair Bolsonaro desfilou com adesivo pró-Aécio no peito. Luciano Huck juntou-se ao candidato para acompanhar a contagem dos votos. Ainda na campanha, o senador encenou: “O nosso presente tem sido uma coleção de decepções”.

No segundo turno, a ex-ministra Marina Silva associou-se a Aécio. Com o adesivo de número 45 colado na roupa, ela anunciou a adesão e ouviu o candidato apregoar “transformação de valores”, “de postura”. Trocaram beijos no rosto, Aécio beijou-lhe as mãos.

Marina disse dias atrás que, em 2014, “muitos candidatos disputavam não a Presidência, mas o comando de uma organização criminosa”. Sobre o processo relativo à delação da JBS, FHC assinalou, num carinho que não mitiga a solidão política do novo réu: “A citação diz respeito ao que se deu na esfera privada. […] No caso do Aécio, pegou dinheiro emprestado”. O ex-presidente qualificou como justa a prisão de Lula. Da maioria do caudaloso séquito aecista na campanha presidencial e na agitação pró-impeachment, escutou-se o silêncio.

Quatro dias depois da reeleição de Dilma, o PSDB questionava a legalidade do triunfo. Em 30 de outubro de 2014, o partido recorreu ao Tribunal Superior Eleitoral requerendo “auditoria especial” na contagem dos votos. No sábado seguinte ao domingo da eleição, manifestantes reivindicaram impeachment e, uma parcela deles, “intervenção militar”. Em 2016, aclamaram Aécio como um grande vitorioso. A maior derrotada foi Dilma.
Balanço sincero da história
Enquanto Aécio caminha para o cadafalso, se a Justiça camarada não o socorrer, Dilma é ovacionada por milhares de pessoas em manifestações no Brasil. Pelo “fora, Temer”, contra a cadeia para Lula, pela revogação da prisão. Sua “honorabilidade está intacta”, escreveu o jornalista Elio Gaspari, no que não é balanço do governo da ex-presidente, mas constatação de decência.

Uma antiga foto de Dilma com a estudante acreana Gleici Damasceno viralizou. A petista Gleici venceu o Big Brother Brasil e gritou “Lula livre!”ao sair do confinamento. Na véspera da sessão em que Aécio virou réu, Dilma conferenciou na Universidade de Berkeley, na Califórnia. Foi aplaudida e puxou o “Lula livre!”.

No dia seguinte, na Universidade Stanford, avistou-se com a militante Angela Davis. É procurada por jornalistas de todo o mundo. E, mundo afora, prestigiada por personalidades democráticas. Anteontem, na República de Curitiba, a juíza Carolina Lebbos a proibiu de visitar o prisioneiro Lula. Já impedira a visita do argentino Adolfo Pérez Esquivel, 86, prêmio Nobel da Paz, e do teólogo Leonardo Boff, 79.

Dilma Rousseff superou Aécio Neves nas urnas e perdeu, no tapetão, para uma conspiração que ele integrou. No balanço sincero da história, Dilma se consagra como mulher digna e valente, goste-se ou não dos seus governos e dos seus dotes oratórios. Aécio se consolida como um aécio.

A presidente deposta transferiu o domicílio eleitoral para Minas. Pode concorrer ao Senado, competindo com o conterrâneo Aécio, se ele se arriscar no desafio temerário da reeleição.

Penso no Brasil: alguém tem dúvida sobre qual dos dois ganharia hoje, no mano a mano, a eleição presidencial?

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