quarta-feira, 3 de janeiro de 2018

O fim do Consenso de Washington?

Por Carlos Drummond, na revista CartaCapital:

Três décadas após o FMI, o Banco Mundial e o Departamento do Tesouro dos EUA elaborarem o Consenso de Washington, assim denominado em 1989 pelo economista inglês John Williamson, ganha corpo principalmente na Europa e nos Estados Unidos o movimento rumo a um ideário oposto denominado Pós-Consenso de Washington.

O conjunto de prescrições para reformar as economias naquela época em crise, principalmente na América Latina, inclui a estabilização macroeconômica, a abertura comercial e financeira, a expansão das forças do mercado e a privatização, entre outros pontos, e é considerado por muitos uma síntese do neoliberalismo e do chamado fundamentalismo de mercado.

Iniciativas recentes cobrindo desde a promoção do pluralismo na apreciação de currículos nos cursos universitários de economia – o que permitirá renovar o ensino, ponto crucial da mudança em andamento – à aplicação de novos princípios econômicos em comunidades locais são alguns indícios do avanço do Pós-Consenso de Washington, assegura Laurie Laybourn-Langton, pesquisador de um dos principais think tanks progressistas do Reino Unido, o Instituto para Pesquisa em Políticas Públicas (IPPR, em inglês).

“Acadêmicos e outros proponentes de um novo consenso e que até alguns anos atrás eram vozes isoladas hoje encorpam o contingente cada vez maior de economistas e analistas reconhecedores de que o neoliberalismo não está funcionando. Mesmo o Fundo Monetário e a OCDE não são mais monólitos ideológicos neoliberais e mostram claros sinais de fratura interna”, chama atenção Laybourn-Langton.

Com Michael Jacobs, diretor do IPPR e professor da Escola de Políticas Públicas da Universidade de Londres, apresentou uma proposta para criação de uma coordenação estratégica destinada a promover o debate sobre sistemas econômicos Pós-Consenso de Washington entre organizações e indivíduos identificados com a ideia.

Inúmeros grupos, a exemplo do Economistas pelas Políticas Econômicas Racionais e da Iniciativa dos Jovens Acadêmicos, integram o movimento, mas ainda não estão articulados nem possuem um plano compartilhado.

A busca crescente de uma convergência pós-Consenso de Washington explica-se tanto pela crise do neoliberalismo quanto pelo sucesso das economias asiáticas que descartaram aquela doutrina, se deram muito bem e são a sua refutação na prática.

“O Japão e a Coreia do Sul, os primeiros países bem-sucedidos do Leste Asiático, ficaram ricos ignorando a maior parte das prescrições do Consenso de Washington.

Nos dois casos, o setor financeiro foi mantido com rédeas curtas, o crédito foi direcionado ou encaminhado para apoiar objetivos industriais específicos definidos pelo governo e a indústria doméstica foi alimentada por proteção tarifária enquanto era forçada a competir agressivamente por mercados externos”, chama atenção o economista Adair Turner, que presidiu a FSA, entidade reguladora do sistema financeiro britânico, integrou o Comitê de Política Financeira do Reino Unido e preside o Institute for New Economic Thinking, que se define como instituição dedicada a desenvolver “ideias econômicas sólidas para melhor servir à humanidade”.

A China, diz, tenta seguir a trilha de rápido crescimento econômico do Japão e da Coreia do Sul, e para enfrentar as dificuldades específicas decorrentes do seu tamanho usa “uma combinação pragmática de incentivos de mercado e direção estatal”.

O setor privado desempenha um papel vital na estratégia, mas não no sentido preconizado pelo Consenso de Washington. “As autoridades chinesas podem promover um arrefecimento deliberado da economia como parte da estratégia de limitar futuros descontroles do processo.

Essa desaceleração deve afetar significativamente a economia global, mas o ferramental disponível em Pequim para administrar tal redução de velocidade dentro de uma ‘economia socialista de mercado híbrida’ e desse modo manter um forte crescimento a médio prazo não deve ser subestimado”, adverte Turner.

Se a China tivesse absorvido de modo abrangente as prescrições políticas implícitas no Consenso de Washington nos últimos 10 ou 20 anos, prossegue o economista, o seu crescimento econômico teria sido consideravelmente mais lento. “As teorias econômicas que apoiaram tais prescrições precisam reconhecer esse fato assim como o continuado sucesso chinês”, dispara o analista.

Em 1998, o economista ganhador do Prêmio Nobel Joseph Stiglitz publicou o texto “Mais instrumentos e objetivos mais amplos: rumo ao Pós-Consenso de Washington”, até hoje uma das principais referências sobre o assunto.

“O Consenso de Washington advoga um conjunto de instrumentos, incluindo estabilidade macroeconômica, liberalização comercial e privatização, para atingir de modo relativamente restrito o objetivo do crescimento econômico. O Pós-Consenso de Washington começa pelo reconhecimento de que um conjunto mais amplo de instrumentos é necessário para atingir esse objetivo, inclusive a regulação financeira, políticas de concorrência, investimento em capital humano e políticas para facilitar a transferência de tecnologia”, destaca Stiglitz.

Além disso, prossegue, o Pós-Consenso de Washington visa também à elevação do padrão de vida, inclusive na educação e na saúde, não apenas aumentos do PIB. Busca o desenvolvimento sustentável, que inclui a preservação dos recursos naturais e a manutenção de um meio ambiente saudável.

Tem como meta um desenvolvimento equitativo, que assegure a todos os grupos da sociedade o desfrute dos benefícios do desenvolvimento, não apenas aos poucos que estão no topo. Almeja ainda o desenvolvimento democrático, no qual os cidadãos participam de variadas maneiras da tomada de decisões que afetem as suas vidas.

O Pós-Consenso de Washington, chama a atenção Stiglitz, não pode ter como sede a capital dos Estados Unidos. Para as políticas serem sustentáveis, precisam ser apropriadas pelos países em desenvolvimento que irão implementá-las. O novo consenso emergente requer ainda “um maior grau de humildade, o franco reconhecimento de que nós não temos todas as respostas”.

Stiglitz critica de modo contundente e fundamentado cada prescrição do Consenso de Washington, a exemplo do controle da inflação, em sua opinião talvez o mais importante elemento dos pacotes de estabilização do FMI.

As evidências mostram apenas que a inflação alta é prejudicial à economia. Quando os países ultrapassam 40% de inflação anual, diz, caem na armadilha inflacionária do crescimento. Abaixo desse nível não há, entretanto, evidência de que a inflação seja danosa ao crescimento.

“Controlar taxas altas e médias de inflação deve ser uma prioridade fundamental, mas baixar uma inflação já baixa não parece melhorar significativamente o funcionamento dos mercados. (...) Fazer os mercados funcionarem requer mais do que apenas inflação baixa. Requer regulação financeira sólida, políticas de concorrência, e para facilitar a transferência de tecnologia e transparência”, ensina Stiglitz.

Em Brasília, em especial no Banco Central, não há, entretanto, quem se disponha a refletir sobre essas ponderações do Nobel de Economia. Em contrapartida, sobram burocratas empenhados em “baixar uma inflação já baixa”.

Um segundo componente da estabilidade macroeconômica, continua Stiglitz, tem sido a redução do tamanho dos déficits orçamentários do governo e em conta corrente. Do mesmo modo que, no caso da inflação, as evidências mostram que grandes déficits orçamentários são deletérios à performance econômica. Não existe, no entanto, um nível ótimo de déficit orçamentário.

O déficit ótimo – ou o espectro de déficits sustentáveis – depende das circunstâncias, incluindo o estado cíclico da economia, as perspectivas de crescimento futuro, os usos do gasto do governo, a solidez dos mercados financeiros e os níveis de investimento e da poupança nacionais.

No tempo do Consenso de Washington, prossegue o economista, privatizar rápida e amplamente e consertar os problemas mais tarde parecia um jogo razoável. Em retrospectiva, fica claro que os advogados da privatização superestimaram seus benefícios e subestimaram seus custos, em especial os custos políticos do próprio processo e os obstáculos criados para reformas futuras.

O economista e vários dos seus colegas, inclusive no Brasil, alertaram contra a privatização precipitada sem criação da infraestrutura institucional necessária, incluindo mercados competitivos e corpos regulatórios. As condições sob as quais a privatização pode alcançar os objetivos públicos de eficiência e equidade, advertiram, são muito limitadas.

“Se, por exemplo, falta concorrência, a criação de um monopólio privado e não regulado pode manifestar várias formas de ineficiência e não ser altamente inovador. A verdade é que empresas de grande porte públicas e privadas compartilham muitas similaridades e enfrentam muitos dos mesmos desafios organizacionais. (...) Não só as diferenças entre empresas públicas e privadas estão borradas como há também um processo contínuo de combinações na interface dos dois grupos”, analisa Stiglitz.

A importância da concorrência em vez da propriedade, compara, foi nitidamente demonstrada pelas experiências muito distintas da China e da Rússia.

“A China preparou-se para manter um crescimento de dois dígitos no PIB, ampliando o escopo da concorrência, mas sem privatizar as empresas de propriedade do Estado. A Rússia, em contraste, privatizou ampla parcela da sua economia sem fazer muito para promover a concorrência. A consequência disso e de outros fatores foi um enorme colapso econômico”, conclui o economista.

O avanço chinês quebra paradigmas neoliberais e os defensores desse ideário se recusam a discutir e a reconhecer o experimento bem-sucedido, pois isso implicaria reconhecer seus erros e abrir mão dos seus dogmas. Como diz Stiglitz, “a magnitude do sucesso da China nas últimas décadas representa um enigma para a teoria-padrão.

A economia não só se esquivou da estratégia de completa privatização como também deixou de incorporar numerosos outros elementos do Consenso de Washington. Isso não a impediu de constituir a maior história de sucesso dos últimos tempos”.

As políticas do Consenso de Washington, prossegue, foram baseadas na rejeição do papel ativista do Estado e na promoção do Estado minimalista, não intervencionista.

“A premissa não assumida é de que os governos são considerados piores do que os mercados. Assim, quanto menor o Estado, melhor – isto é, menos pior – é o Estado. Eu não acredito em formulações absolutas do tipo ‘governo é pior do que mercado’. O governo tem o importante papel de dar respostas às falhas de mercado... tornar o Estado mais eficiente é uma tarefa consideravelmente mais complexa do que apenas reduzir o seu tamanho.”

No momento em que herdeiros do Consenso de Washington no Brasil reapresentam, com vista a 2018, propostas emanadas do mesmo ideário colocadas em prática no País nos anos 1990 e a partir de 2015 com enorme retrocesso econômico e social, todo cuidado é pouco.

0 comentários: