sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

A Petrobras e o alto preço da submissão

Por Giorgio Romano Schutte, na revista CartaCapital:

No início do ano, a Petrobras fechou um acordo nos Estados Unidos com o escritório de advocacia Pomerantz, representante dos acionistas que se consideram lesados pela petroleira em uma ação coletiva. A empresa dispôs-se a pagar 2,95 bilhões de dólares (cerca de 9,6 bilhões de reais). O processo começou no fim de 2014, a partir das delações premiadas de Alberto Youssef, Paulo Roberto Costa e Renato Duque.

Alegou-se que a empresa maquiou relatórios para ocultar o roubo. Por omissão ou voluntariamente, prestou informações erradas sobre a real situação e a qualidade dos seus controles internos, o que causou prejuízo aos investidores que adquiriram ações da Petrobras na Bolsa de Nova York de janeiro de 2010 a julho de 2015. Juntaram-se à ação compradores de debêntures em 2013 e 2014.

A atual direção da companhia manteve a linha de defesa da anterior: a empresa foi roubada por um esquema criminoso e não lucrou com isso. Não houve reconhecimento de culpa ou de prática de atos irregulares pela Petrobras. “No acordo, a companhia expressamente nega responsabilidade. Isso reflete a sua condição de vítima dos atos revelados pela Operação Lava Jato, conforme reconhecido por autoridades brasileiras, inclusive o Supremo Tribunal Federal”, informou a estatal, em nota de esclarecimento. Mas por que a Petrobras é julgada nos EUA?

Para entender, temos de voltar ao período FHC. Parte do governo tucano, entre os quais o então presidente do Banco Central, Gustavo Franco, defendia abertamente a privatização da Petrobras. Não havia, porém, condições políticas para levar o projeto adiante. A solução intermediária era a venda de ações nos anos 2000 e 2001, como parte do Programa Nacional de Desestatização. Foram leiloadas ações ordinárias (ON), mantendo 55% com o setor público (a União ficou com pouco mais de 50% e o restante era do BNDESpar). Os demais papéis leiloados na Bovespa ficaram, na época, com estrangeiros e brasileiros.

O passo seguinte era a venda de ações preferenciais (sem direito a voto). Mais de 80% destas foram ofertadas na Bolsa de Valores de Nova York e o restante na Bovespa, sendo uma pequena parte para correntistas do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS). Ao emiti-las, a Petrobras submeteu-se à legislação americana. Por seguir a disciplina do mercado financeiro em Wall Street, a estatal aumentaria a sua capacidade de captar recursos, dizia o governo. Estávamos na época da Petrobrax e a empresa deveria “sair do provincialismo”.

Embora isso faça sentido dentro da lógica dos mercados financeiros, o que realmente iria determinar a capacidade de captação de recursos seriam as descobertas de novas reservas, em particular o pré-sal, que é um lastro real e poderoso. Assim, no fim do governo FHC, embora controlado pelo Estado, somente em torno de um terço do capital social (preferenciais e ordinárias) estava nas mãos da União. Outros 10% com o BNDESpar e o FGTS. Mais de 30% estavam sendo negociados em Nova York e o restante na Bovespa, onde parte significativa estava nas mãos de estrangeiros.

O acordo da Petrobras nos Estados Unidos não diz respeito exatamente a acionistas americanos, mas a compradores de ações e títulos nos EUA. Foi somente em 2010, a partir da forma como o governo Lula organizou a megacapitalização, que a porcentagem do setor público aumentou para 48,3%. Nesses anos todos as ações da Petrobras estiveram entre as mais transacionadas na Bolsa de Valores de Nova York. Entre 2002 e 2014, o valor de mercado da empresa aumentou de 15,5 bilhões para 104,9 bilhões de dólares. Ou seja, sobretudo durante o governo Lula, os acionistas de Nova York se deram muito bem, obrigado.

No fim de 2008, houve uma queda expressiva no valor das ações preferenciais, que baixaram de quase 44 reais no fim de 2007 para 23 reais. O motivo? A crise financeira iniciada em Nova York, provocada pela falta de supervisão das autoridades americanas, com manipulações de informações escancaradas e avaliações surreais dos ativos por parte das mesmas agências de rating. Neste caso, claro, tudo fazia parte do jogo.

De qualquer forma, ao ter suas ações negociadas em Wall Street, a Petrobras teve de se adequar à Lei Sarbanes-Oxley, com uma série de exigências para garantir a transparência e a defesa dos acionistas. Em 2006, a empresa conquistou a primeira certificação de conformidade com a lei. A auditoria dos relatórios financeiros e dos balanços seguia não apenas as normas brasileiras, mas também as americanas. Empresas especializadas, como a KPMG e a PwC, aprovaram os balanços sem ressalvas, demonstrando que se tratava de um esquema criminoso a operar abaixo de qualquer radar. Apenas por isso já não faria o menor sentido exigir compensação financeira por falhas nos mecanismos de controle da Petrobras.

Tampouco faz sentido sugerir que a queda no valor das ações no período de 2010 a 2015 se deva exclusivamente ao roubo. Há vários outros fatores, como a reação do mercado à megacapitalização realizada em setembro de 2010, o hiato mantido pelo governo entre o preço internacional do petróleo e os valores internos, a forte queda do preço da commodity em 2014, o impacto das eleições em outubro de 2014, seguido pela desestabilização política e, depois, pela desvalorização do real.

Em 2014, após a Lava Jato, a PwC exigiu um ajuste contábil que incluísse as perdas provocadas pela corrupção. Classificado como “baixa de gastos adicionais capitalizados indevidamente”, o prejuízo foi calculado em 6,2 bilhões de reais, ante um ajuste contábil total de 56 bilhões. Ou seja, somente 11% da perda do patrimônio foi considerada decorrente do esquema ilícito.

A Petrobras aceitou, portanto, pagar um valor superior ao total que ela mesma estipulou como sendo a perda provocada pelo esquema. Além disso, a companhia obteve, em 2013, lucro líquido de 34,354 bilhões de reais e, no primeiro semestre de 2014, de 10,35 bilhões. Esses números nunca foram contestados.

Por que, então, a Petrobras aceitou o pagamento do valor monstruoso de quase 10 bilhões de reais, quando ela vive afirmando, com razão, que seu problema é financeiro? O governo justificou a entrada dos oligopólios internacionais no pré-sal pela incapacidade financeira da estatal. Aí temos de considerar que a ação coletiva por parte dos acionistas e investidores tornou-se um negócio, um big business. Facilmente, o escritório Pomerantz fica com 20% do valor. Trata-se de um verdadeiro esquema de extorsão. Se não pagasse agora, a Petrobras teria sido levada a um júri popular, que tende a favorecer os investidores.

O acordo representa o maior valor já pago por uma empresa estrangeira. Faltou dizer que é o maior valor pago por uma estatal, uma vez que o controle está nas mãos da União. Por que a direção da Petrobras cuidou do caso como uma empresa privada? O assunto deveria ser tratado pelo governo, é uma questão de soberania nacional. Não ocorreu, porém, nenhuma atuação por parte da Presidência ou do Ministério das Relações Exteriores.

No fim de dezembro, o instituto Datafolha publicou uma pesquisa a revelar que 70% da população brasileira é contra a privatização da Petrobras. O que chamou menos atenção foi outra pergunta: questionados sobre a participação de capital estrangeiro na empresa, 78% declararam posição contrária.

A triste verdade é que quase um terço do capital social está há tempos nas mãos de estrangeiros. Quase 30% das ações estão sendo negociadas em Wall Street, onde muitos lucraram com os papéis da companhia ao longo dos anos, submetendo a estatal brasileira à legislação americana. A Bolsa reagiu bem ao acordo, assim como a agência de rating Moody’s. Ao cabo, o acordo mostrou que a Petrobras está sob a disciplina do mercado.

* Professor de Relações Internacionais e Economia da Universidade Federal do ABC e integrante do Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais (GR-RI).

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