sábado, 16 de dezembro de 2017

A ampliação da democracia na Venezuela

Por Felipe Bianchi, de Maracaibo/Venezuela, no site do Centro de Estudos Barão de Itararé:

Para além da redução da desigualdade social através da distribuição da renda petroleira, a Venezuela logrou outras importantes conquistas que nem sempre estão no debate público sobre o país. Poder independente, o Conselho Nacional Eleitoral (CNE) é o pivô de um significativo avanço: ao longo das últimas duas décadas, o órgão foi peça chave para ampliar a participação popular nos processos de decisão política no país, dando um novo sentido ao voto.

Exemplo concreto desse processo é o empoderamento de comunidades indígenas em relação às eleições e referendos. Historicamente excluído e marginalizado, esse setor da sociedade venezuelana não foi esquecido no projeto iniciado pelo CNE há cerca de 18 anos. “Desde quando iniciou-se esse processo democrático, nossa participação enquanto população indígena tem sido muito ativa e eficiente”, relata Maria Machado. Indígena da etnia wayuú, Machado é trabalhadora do CNE no estado Zulia, oeste do país. “As portas foram abertas não só para nós, os wayuú, mas para toda a população indígena participar do processo eleitoral”.

Ao todo, são cinco representações indígenas em Zulia: añú, japreria, yukpa e barí. A população wayuú, a maior das cinco, soma cerca de 8 mil de pessoas. Para se ter ideia, os grupos indígenas representam mais de 11% da população total de Zulia, que é um dos maiores estados da Venezuela - com mais de 3,5 milhões de habitantes, Zulia só fica atrás do Distrito Capital (onde fica Caracas), que concentra mais de 5 milhões de habitantes. Essa população indígena, entretanto, estende-se para além da fronteira com a Colômbia, na região de La Guajira.

De acordo com Maria Machado, a inclusão de setores como o de seu grupo indígena é fundamental para garantir, por exemplo, o direito à reivindicação de políticas públicas que os beneficiem: “Se eu, como cidadã e eleitora, quero, por exemplo, a paz no meu território, eu tenho que participar. Eu votei, eu elegi e tenho direito de exigir. Por isso estamos ativos nos processos eleitorais”, argumenta. Se antes não faziam parte dos planos de quem organizava os eventos eleitorais no país, “agora, o CNE chega até nós, os indígenas, permitindo que participemos dos eventos democráticos”, salienta Machado.

Em reunião com uma delegação de observadores internacionais que acompanharam as eleições municipais realizadas no dia 10 de dezembro, representantes do CNE explicaram a complexa logística desenvolvida para alcançar rincões da Venezuela “profunda”. Em algumas localidades, o órgão eleitoral transporta o equipamento de voto por via fluvial, em barcos, ou até mesmo por via aérea, em helicópteros. Como o voto no país é um direito, e não uma obrigação, o Poder Eleitoral não poupar esforços em promover uma espécie de “democratização da democracia”.

“Nós, venezuelanos, temos demonstrado nossa vontade de participar e, sobretudo, demonstramos que neste país há paz”, sublinha Maria Machado. Ela explica que, diferente das práticas de violência e das chamadas ‘guarimbas’ que tomaram conta dos noticiários internacionais durante o primeiro semestre de 2017, as cenas de caos e destruição não se repetem nas regiões onde predominam povos originários.“Há muitos rumores sobre a violência, mas isso só se passa nas zonas urbanas. Nas zonas indígenas, não existe isso. Caminho rua à rua nas zonas rurais e coordeno uma região eleitoral, prezando sempre pelo diálogo. Por isso, temos zero violência na zona rural, vivendo processos eleitorais de paz”.

Para alguns grupos indígenas, a chegada de Hugo Chávez à presidência da República ficou marcada como um período de “renascer indígena”. Em 2002, por exemplo, Chávez assinou o decreto 1.795, estabelecendo o uso obrigatório de línguas indígenas em zonas mistas de influência e a criação de um Conselho Nacional de Educação, Cultura e Idiomas Indígenas.

Além disso, Chávez também deixou sua marca na valorização da identidade e da dignidade desse setor da população. “Somos wayuú e nossa representação indígena vem exposta em nossa cédula de identidade. Isso graças ao presidente Chávez, que nos deu o direito à identidade, de sermos reconhecidos como cidadãos do país”, sublinha Maria Angela Rodríguez.

Eleitora em um centro de votação no município de Mara, Rodríguez falou à reportagem do Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé. É a terceira vez em 133 dias que a eleitora indígena exerce seu direito ao voto. Em 30 de julho, os venezuelanos foram às urnas para legitimar e escolher seus representantes para a Assembleia Nacional Constituinte, saída constitucional que o governo encontrou para, fortalecendo a participação popular, restabelecer a paz. Em 15 de outubro, foi a vez das eleições regionais.

Passado o período de violência política no país, Rodríguez respira aliviada. No estado de Zulia, por exemplo, diversos prédios públicos foram alvo de incêndios premeditados e duas pessoas foram queimadas vivas por serem supostamente chavistas. “Somos um povo de paz, mas também temos, em nossa história, grandes patriotas e lutadores. E por isso, vamos lutar. Por nossa liberdade e pela paz”, frisa a indígena.

O legado deixado por Chávez para as representações indígenas é amplo. Vai da construção de escolas com ensino bilíngue - espanhol e wayuunaiki) à venda de alimentos a preços subsidiados para combater a fome e a desnutrição. Os registros desse aumento da qualidade de vida e da valorização social e cultural podem ser encontrados estão estampados nos muros da região.

Democracia, soberania e autodeterminação

A refundação constitucional da Venezuela em 1999, um ano após a eleição de Hugo Chávez para a presidência, determina que o CNE deve funcionar sob princípios de independência, autonomia funcional e orçamentária, despartidarização da administração eleitoral e, também, garantir a transparência e segurança nos processos de votação e escrutínio.

Na primeira eleição de Hugo Chávez, em 1998, a população eleitoral do país era de pouco mais de 11 milhões de eleitores. Naquele ano, a abstenção foi de 36,55%. Em 2013, primeira eleição sem Chávez, a disputa política se polarizou entre o opositor Henrique Capriles e Nicolás Maduro, anunciado por Chávez como candidato a seu sucessor. Com população eleitoral 20% maior do que em 1998, a abstenção, 15 anos depois, caiu para 20%. Como parâmetro, basta observar que, no Brasil, em 2014, na disputa entre Aécio Neves e Dilma Rousseff, a abstenção foi de 21,5%. Um pouco maior que na Venezuela, mas com um detalhe crucial: no Brasil, o voto é obrigatório.


Gráfico por Julia Stabel

Passíveis de interpretação, os números descortinam um quadro interessante de aumento da participação popular nos processos eleitorais, principalmente pelo fato de o voto não ser obrigatório na Venezuela. O índice de participação registrados nos três processos eleitorais realizados em 2017, em meio a um cenário de violência, instabilidade e grave crise causada pela guerra econômica enfrentada pelo governo de Nicolás Maduro, revelam um cenário de elevada consciência política, que atravessa ruas ou rios para expressar suas escolhas nas urnas.

Cabe registrar, também, o reconhecimento, por parte de especialistas e observadores internacionais (leia mais aqui), quanto à segurança e inviolabilidade do sistema eleitoral implementado pelo CNE- são feitas até 13 auditorias, além de identificação biográfica, biométrica e comprovante digital e impresso do voto praticado pelo eleitor, tudo em um sistema digital extremamente dinâmico e transparente, sob testemunha de todas as forças políticas envolvidas na disputa. Um quadro que mostra mais que o caráter do Poder Eleitoral como propulsor de uma cultura democrática “protagónica”, conforme prega a Constituição venezuelana, mas também de um profundo compromisso do país com a soberania e a autodeterminação popular.

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