quinta-feira, 14 de setembro de 2017

Santander abre precedente perigoso

Por Paulo Moreira Leite, em seu blog:

Poucos episódios recentes ilustram com clareza a gravidade dos tempos em que vivemos como a decisão do Santander em cancelar uma exposição de obras de arte por pressão dos pré-fascistas do MBL em Porto Alegre.

A decisão da instituição espanhola foi um gesto de capitulação de um dos cinco maiores bancos instalados no país - e um dos maiores do mundo, com uma força imensa em nossos vizinhos de fala castelhana - perante uma vergonhosa demonstração de intolerância e espírito totalitário.

Vamos reconhecer os fatos. O banco organizou, aprovou e promoveu uma exposição em Porto Alegre. Polêmica, genial, medíocre, não importa. Era um direito seu.

Ao ceder a pressão externa, o banco deu uma demonstração de conivência - e nenhum compromisso com os valores democráticos - perante uma organização que trabalha diariamente pelo esmagamento dos direitos e garantias da Constituição brasileira.

É de se imaginar como o Santander - que só ganhou um lugar entre os grandes bancos do país depois de vencer a privatização do Banespa no reinado de FHC - irá reagir caso o MBL pegue gosto e comece a denunciar a presença de seus anúncios publicitários em jornais, revistas, sites, que pode vir a classificar como suspeitos ou coisa parecida.

Também cabe perguntar como irão se comportar outros patrocinadores, que poderiam promover eventos ligados a causas consideradas polêmicas, inconvenientes ou sei lá o que. Vão se escolher também? Só irão promover obras como o filmeco da Lava Jato?

Não se trata de um atitude sem antecedentes. O prefake João Dória marcou a posse em São Paulo com um gesto típico de ditadorzinho com uma campanha de perseguição a pichações espalhadas pela cidade. Num esforço para reprimir formas mais populares e menos controladas de expressão da juventude urbana e pobre, o prefake colocou-se no direito de resolver um dos mais profundos e duradouros mistérios da cultura universal - separar o que é arte do que não é e usar força policial para impor seus critérios ao conjunto da população, diminuindo ainda mais o espaço dos pobres e excluídos na cidade

A repressão violenta a manifestações culturais faz parte do histórico das piores ditaduras. A primeira grande queima de livros da Alemanha nazista, ocorreu em maio de 1933. Naquele momento, Adolf Hitler comandava um governo em trânsito, que abandonava o regime constitucional para se transformar em ditadura, que iria se consolidar em 1934

A fogueira de livros foi parte desse processo, uma demonstração de força contra a parcela da população que resistia ao nazismo -- e se expressava nas obras de romancistas, críticos e ensaístas. Mais tarde, veio o confisco de obras de arte -- que tinha como alvo o trabalho genial de modernistas como Chagall, Picasso, Kandinsky, que um artista plástico abaixo de medíocre como Hitler classificava como símbolos da decadência da cultura europeia.

Como sabemos, a barbárie daquela época constitui um caso exemplar de estudo sobre a bestialidade humana. Os melhores e animadores momentos do período envolvem gestos de resistência, como uma carta do genial Premio Nobel Thomas Mann, perseguido desde o primeiro dia pelos nazistas. Numa carta de 1937, já refugiado na Suíça, ele mandou uma mensagem ao reitor da Universidade de Bonn, que lhe cassara um título de doutor honoris causa. A amargura do autor de obras inesquecíveis como A Montanha Mágica é uma lição universal: "Nestes quatro anos de exílio involuntário, nunca parei de meditar sobre minha situação. Se tivesse ficado ou retornado à Alemanha, talvez já estivesse morto. Jamais sonhei que no fim da minha vida seria um emigrante, despojado da nacionalidade, vivendo desta maneira".

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