sábado, 23 de setembro de 2017

A sombra do bigode de Hitler

Por João Paulo Cunha, no jornal Brasil de Fato:

O Brasil caminha para o fascismo. Até pouco tempo atrás, o conservadorismo, a direita e os reacionários se movimentavam na arena política, mas valia uma certa segurança em relação à maturidade da democracia. Tudo parecia conduzir para um confronto a ser vivido publicamente no debate de ideias e nas disputas políticas, institucionais e no coração da sociedade. Hoje, desfeito o cenário otimista, não faltam nem mesmo as figuras patéticas da ultradireita, cujos nomes não merecem sequer ser citados.

A construção do caldo fascista pode ser percebida por ações políticas, culturais, administrativas e ideológicas. Como é próprio do fascismo, são atitudes que radicalizam o pensamento de direita, na defesa de doutrinas e movimentos ao mesmo tempo antiliberais e anti-igualitários. Se a direita é o gênero, o fascismo é a espécie. Essa distinção é importante para não permitir que sob a capa de certo liberalismo tolerante com o horror, se validem ações que inviabilizem a democracia. A direita, do ponto de vista da esquerda, é adversária. O fascismo, sob qualquer medida civilizada, é sempre inimigo.

Por isso é importante estar atento aos sinais que brotam dos mais diferentes campos. Uma das artimanhas mais perigosas é considerar como naturais ações que ocorrem no cotidiano da sociedade, como se fossem experiências que brotam espontaneamente da consciência de pessoas e grupos e por essa razão merecessem sempre consideração. Com o pretexto de expressar visões de mundo particulares, pode-se chegar a vedar inclusive a abertura que permitiu que se constituísse uma sociedade diversa. Os fascistas usam a liberdade de defender suas ideias para exterminar a ideia de liberdade.

É o que estamos acompanhando com a sequência cada vez mais intensa de censura no campo artístico, encaminhada por grupos com interesses políticos reacionários, como o MBL. Fechamento de exposições, retirada de obras de mostras, cancelamento de apresentações teatrais por censura religiosa e criminalização de expressões artísticas populares. A passagem aparentemente fluida do estético para o político se revela um jogo perigoso de cerceamento da liberdade em todas as instâncias da sociedade.

Essa operação pode também ser considerada como um exemplo do que se chama de moralismo, com a substituição dos juízos universais, expressos na lei, pela pressão em torno de valores particulares. São moralistas e, no limite, fascistas, ações que se dirigem para impedir a autonomia do professor no ato de ensinar e a retirada de conteúdos críticos dos currículos, como propõe a escola sem partido.

Vai no mesmo caminho a retomada do projeto da “cura gay”, defendido por setores ligados à bancada evangélica, que tenta pressionar entidades de classe. Proposta que sempre se articula em momentos de relativa regressão social, tem como base não apenas uma visão ultrapassada de ciência e ética profissional, como a tentativa de medicalizar o sujeito, instrumentalizar a repressão e classificar os desejos.

E, ainda, a interrupção dos programas voltados para usuários de drogas estruturados a partir da busca de alternativas e criação de oportunidades. Em nome do higienismo que “limpa” territórios para a especulação imobiliária, e das internações compulsórias, a complexa questão das drogas é reduzida à fraqueza moral do indivíduo. Vidas são reduzidas a uma substância. O usuário de crack deixa de ser expressão de nossos equívocos para ser um inconveniente causador de transtornos de classe.

Nos três casos, o moralismo começa desafiando o conhecimento científico para chegar em seguida confrontar a própria noção de humanidade. Alunos são vistos como receptáculos sem crítica, carentes de doutrinação repressora. As pessoas LGBT são encapsuladas numa patologia, contra todos os protocolos internacionais, ficando a mercê da retificação saneadora. Os usuários de drogas ilegais, sem compreensão da ampla cadeia de causas de sua situação, são condenados ao périplo entre cracolândias que deslizam para espaços públicos menos valorizados e o asilamento que desafia sua autonomia.

Os exemplos se sucedem, numa fila interminável. Não se trata de oposição a projetos conservadores e entreguistas, mas de atitudes que rescendem seu caráter francamente fascista e violento. Ora partem do Estado, de forma vertical e sem debate com a cidadania, outras vezes ganham abrigo na própria sociedade, que se sente segura em colocar de fora suas pretensões autoritárias, preconceituosas e excludentes.

Até mesmo o afastamento político das Forças Armadas durante a crise, que foi considerado como argumento para desconstruir a narrativa do golpe, começa a mudar. Agindo de forma conspiratória, os militares começam a colocar de fora suas insígnias autoritárias por meio de declarações de generais estrelados. E, para não deixar dúvidas de que há certa ordem unida na caserna, essa visão se confirma com a recusa de enquadramento dos falastrões por parte das instâncias superiores. Os militares, que já foram a vanguarda do atraso, hoje assumem a retaguarda do golpe.

O “não passarão!” não pode esperar até as eleições. Eles já estão passando.

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