quinta-feira, 21 de setembro de 2017

A crise política e o fator militar

Por Luis Nassif, no Jornal GGN:

Peça 1 – sobre os cenários improváveis

Até a posse de Dilma Rousseff, já havia ocorrido os seguintes fenômenos, que passaram despercebidos dos partidos políticos e dos analistas em geral:

1. A montagem da bancada de Eduardo Cunha e Michel Temer, com recursos obtidos dos cargos públicos que receberam do PT.

2. As ligações entre a Lava Jato, a Procuradoria Geral da República (PGR) e o Departamento de Estado norte-americano.

3. A parceria Mídia-Ministério Público Federal (MPF), criada com a AP 470, do “mensalão”.

4. A parceria mercado-PMDB, em torno da “Ponte para o Futuro”.

5. A entrada de novos militantes de direita nas redes sociais.

Consumado o impeachment, em pouco tempo ocorreram fatos impensáveis, até então:

1. Um golpe jurídico-midiático-parlamentar.

2. A tomada do Legislativo e do Executivo pela pior organização política da história.

3. Em pouquíssimo tempo, a liquidação da engenharia nacional, junto com cadeia do petróleo e gás e os estaleiros implantados no período pela ação da Lava Jato.

4. A destruição das principais multinacionais do país e a criminalização da diplomacia externa.

5. O desmonte do Estado.

6. A tentativa de privatização selvagem.

7. Aumento da repressão em todos os níveis, de mortes de lideranças sociais à caçada aos dissidentes, fossem delegados da PF, jornalistas ou militantes.

8. Avanço da intolerância religiosa e moral em todos os níveis, com partidarização inédita da Justiça e do MPF.

Entrou-se em um novo normal, no qual não é possível mais estimar o fundo do poço. Desde que se implodiu o edifício democrático, com o impeachment, instaurou-se o imprevisível, com um amplo leque de possibilidades.

Em alguns momentos, é possível vislumbrar algum refluxo da intolerância. No momento seguinte, aparecem novas nuvens toldando o horizonte. Mas as razões estruturais permanecem apontando para desfechos pouco otimistas.

Peça 2 – o fator militar

As declarações do general do Exército Antônio Hamilton Martins Mourão, mencionando possibilidade de uma intervenção militar, definiram uma nova etapa, um novo normal em cima do anterior.

Depois das intervenções das Forças Armadas em várias capitais do Nordeste, em Vitória e no Rio de Janeiro, devido à perda de controle dos respectivos governos sobre a segurança interna, se poderia considerar a afirmação apenas uma constatação óbvia.

Disse o general: “Então no presente momento, o que que nós vislumbramos, os Poderes terão que buscar a solução. Se não conseguirem, né?, chegará a hora que nós teremos que impor uma solução. E essa imposição ela não será fácil, ele trará problemas”.

Partindo de um oficial da ativa, ganha outro significado. E os desdobramentos do episódio mostram o novo cenário.

Houve grita da mídia, por uma resposta do governo ao militar. O ministro da Defesa Raul Jungman chegou a anunciar que cobraria providências. Ontem à noite, no programa de Pedro Bial, o chefe do Estado Maior das Forças Armadas, general Villas Boas, declarou em alto e bom som que não haveria punição, que o general falou em ambiente fechado, provocado pelas perguntas etc.

Ali, encerrou-se a fase de subordinação das Forças Armadas ao poder civil.

Obedeceu a uma lógica óbvia: como vai punir um companheiro de fardas, que expressou o sentimento do Alto Comando, se o próprio presidente da República é reconhecidamente corrupto e o Congresso Nacional está dominado por um grupo de parlamentares denunciados?

Peça 3 – as características do pensamento militar

Para se avaliar desdobramentos do episódio, é necessário um mergulho, ainda que superficial, no pensamento militar.
Disciplina

Quando o general menciona que, nas Forças Armadas, tudo é organizado e planejado, vale para a estrutura administrativa e vale para a cabeça do militar. O positivismo dos tempos do Império continua entranhado na cultura militar. Tudo tem que ser previsto, calculado, hierarquizado, branco no preto. Por isso mesmo, há uma dificuldade enorme em entender processos sociais ou a balbúrdia inerente aos processos democráticos, ou mesmo os sistemas mais fluidos do mercado.
Anticorrupção

Funcionários públicos costumam se valer de muitas carreiras de Estado como trampolim para o mercado. No caso dos militares, é dedicação para toda vida, com exceção de algumas áreas tecnológicas. Por isso mesmo, a corrupção é o maior inimigo vislumbrado. Aliás, o regime militar entrou na reta final quando foram revelados os escândalos da Capemi, batendo na corporação militar.

O noticiário exaustivo sobre corrupção calou fundo nas Forças Armadas. A Lava Jato é aceita; o Ministério Público Federal, não, em parte devido às suas políticas ambientais e de defesa de direitos humanos.

A política tradicional é execrada, mas Lula e o PT também.
Interesse nacional

Para as Forças Armadas, a Amazônia Verde é tema tabu, quase tão relevante quanto a Amazônia Azul, da costa brasileira e do pré-sal. Entendem que grande parte das disputas geopolíticas se dá pelo controle das últimas reservas de matéria prima do planeta. E o Brasil tem que aproveitar seu potencial para fazer valer o Poder nacional.

Sua posição sobre a produção interna estratégica, o mercado interno e as estatais aproxima-se bastante das teses desenvolvimentistas, com o desenvolvimento sendo subordinado a visões sobre segurança nacional.

Peça 4 – vivandeiras e interesses setoriais

Em 1964, ficou famoso o termo “vivandeiras”, para caracterizar os que iam bater à porte dos quartéis, exigindo intervenção militar.

Hoje em dia, os apelos provem de uma minoria barulhenta. Mas há um conjunto de fatores que poderá pressionar os militares:

1. Vendeu-se a ideia de que bastaria a saída de Dilma para tudo entrar nos eixos. O choque representado pela entrada de Temer e pela adesão a ele dos baluartes da anticorrupção praticamente exterminaram a credibilidade de todos os partidos políticos. Praticamente a única figura que restou da atual geração política foi Lula, e submetido a ameaças crescentes.

2. Os negócios que estão sendo armados na Eletrobrás e outros setores, a Lei do Teto e o esvaziamento do BNDES são ameaças concretas a diversos setores relevantes da economia. Já caiu a ficha da indústria e comércio que a atual política econômica beneficia exclusivamente o grande capital e as grandes negociatas

3. Os problemas crônicos de segurança pública, que serão agravados pela PEC do Teto. A crise fiscal, que bateu fundo também nas Forças Armadas.

4. A perspectiva de novas eleições com as regras atuais, permitindo a volta de parlamentares denunciados.

5. As ameaças sobre a Amazônia e o pré-sal.

Some-se a isso esses tempos de redes sociais, que estão permitindo a diversos oficiais generais contato direto com a massa made in Twitter. Ou se julgava que, depois do opinionismo desvairado e sem controle de juízes, procuradores, Ministros do Supremo, a corporação militar ficaria de fora. São tão classe média quanto os outros. E, dentro do caos institucional dos demais poderes, como exigir que, em algum momento, os militares não se apresentassem nas discussões?

Peça 5 – a lógica dos regimes de exceção

A lógica dos regimes de exceção é sempre a mesma.

Primeiro, a ideia de intervir, limpar a política dos “maus políticos” e devolver o poder aos civis. Depois, o tempo vai passando e decidem ampliar o salvacionismo, prorrogando a intervenção. É questão de tempo para a lógica do poder se impor.

Na hipótese de um reavivamento do poder militar, quais seriam as consequências?

Movimentos sociais – reprimidos, assim como Lula e o petismo.

Direitos humanos – reduzidos, mas provavelmente com a implantação de algumas políticas distributivistas.

Setores estratégicos – revigorados, sob controle direto do Estado, infraestrutura (energia, transportes).

Mercado – restrito às empresas do setor privado, sem nenhuma chance de entrar em infraestrutura e outras áreas críticas. O pensamento militar entende muito melhor modelos como Telebras, Eletrobras, Petrobras, do que agências reguladoras, em geral capturadas pelo mercado.

Política econômica – levaria algum tempo para perceber o efeito deletério da política monetária sobre a atividade e o orçamento. Mas o modelo chinês seria de fácil assimilação, especialmente para o raciocínio militar.

Meio ambiente – terceiro plano, assim como as populações indígenas.

Campeões nacionais – estariam de volta, já que as multinacionais brasileiras são vistas, pelo pensamento militar, como extensão do Poder nacional.

Limpeza política – de cambulhada, iria metade da Câmara. Os corruptos serviriam de álibi para decapitar as principais lideranças da oposição.

Mídia - a Globo fecharia o dia criticando o poder militar. Ao primeiro clarim da manhã, os bravos colegas mudariam de opinião, como tropa bem disciplinada. No pós-1964 ainda havia algumas referências liberais civis, como o Jornal do Brasil e o Correio da Manhã. Hoje em dia, não existe mais o chamado caráter editorial. Mudar de um barco para outro seria medida rápida. Em qualquer hipótese acaba o poder desestabilizador da mídia.

Liberdade de expressão – seria suprimida gradativamente, em nome do interesse nacional, assim como liberdade de organização, sindicatos etc.

Geopolítica – sairiam procuradores e juízes alinhados com os EUA e voltariam as políticas diplomáticas soberanas.

Supremo Tribunal Federal – não resistiria ao primeiro toque de clarim.

Peça 6 – os desdobramentos possíveis

No fim do túnel há três possibilidades:

Possibilidade 1 – os militares assumindo o controle do país. Probabilidade baixa.

Possibilidade 2 – alinhados com alguma candidatura bonapartista, com a re-centralização do poder no Executivo (leia, a propósito, o artigo de André Araújo no GGN, “Sem estado forte, outro poder mandará”). Falta identificar o Bonaparte. Bolsonaro atrai o baixo clero militar. Mas é uma ameaça permanente.

Possibilidade 3 – eleições em 2018, com recomposição do centro democrático, e as Forças Armadas retomando seu papel constitucional.

Hipótese difícil. O quadro político está tão fragmentado que, do lado do pessoal do impeachment, não há um interlocutor sequer. E, do lado, das esquerdas, apenas uma liderança, Lula, ameaçada em várias frentes. E as novas forças que surgem, de forma autônoma ou atreladas aos partidos tradicionais, não encontram ainda oxigênio para ganhar dimensão nacional, com as regras políticas enfeixadas nas mãos da geração que não quer ir embora.

De qualquer forma, o jogo político está mais propenso para uma candidatura de confronto, do que de conciliação.

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