sábado, 19 de agosto de 2017

Venezuela: uma experiência sui generis

Por Altamiro Borges

[Primeiro capítulo do livro "Venezuela: originalidade e ousadia", publicado em 2005 pela Editora Anita Garibaldi e pela Fundação Maurício Grabois]

“Sou apenas uma débil palha arrastada pelo furacão revolucionário”. Presidente Hugo Chávez.

Qual o segredo da Venezuela? O que explica tamanho ódio do imperialismo estadunidense e da oligarquia local, que já patrocinaram um golpe fascista em abril de 2002, um locaute patronal de 63 dias, vários atos de sabotagem e inúmeras mortes? De onde provem a capacidade de resistência do governo Hugo Chávez, que desde a vitória eleitoral em dezembro de 1998 enfrenta permanentes tentativas de desestabilização? O estudo desta rica experiência, marcada pela originalidade e ousadia, ajuda a decifrar os seus mistérios e a entender o crescente fascínio que ela desperta junto aos povos latino-americanos. Também serve de alerta para a urgência da solidariedade à “revolução bolivariana”, alvo agora de uma nova investida golpista.

O “referendo revogatório” de 15 de agosto será o próximo teste deste processo de feições revolucionárias. E o seu resultado não afetará apenas a nação vizinha. Sinalizará o próprio futuro da luta pela democracia, soberania e justiça social dos despossuídos da região. Afinal, a “revolução bolivariana” condensa hoje a rebeldia do continente contra a globalização neoliberal. Se vencer o “sim” à revogação do mandato de Hugo Chávez, a ofensiva do “império do mal”, liderada pelo torturador George Bush, ganhará um novo impulso. O resultado será interpretado pela esquerda claudicante como sinal de que “não há alternativa” ao neoliberalismo. Se vencer o “no”, as vias abertas na América Latina serão bem mais promissoras.

Marca da originalidade

Gilberto Maringoni, autor de A Venezuela que se inventa [1], foi certeiro ao abrir seu livro com um poema de Simón Rodrigues (1769-1854), mestre do libertador Simón Bolívar [2]. “Onde buscaremos modelos? A América espanhola é original. Originais hão de ser suas instituições e seu governo. E originais os meios de fundarem umas e outro. Ou inventamos ou erramos”. A experiência da “revolução bolivariana” tem a marca da originalidade, que desafia dogmas e modelos pré-estabelecidos. Talvez por isto tenha esbarrado em tantas incompreensões de setores da intelectualidade progressista e da esquerda mundial, temerosos com a inexistência de correntes políticas nitidamente socialistas e a forte presença da componente militar.

Mas, a exemplo de outros processos revolucionários, a experiência venezuelana tem suas peculiaridades, decorrentes da história e da cultura deste sofrido povo; e, mais do que isto, ela está em pleno movimento dialético, evoluindo com o tempo. Como gosta de enfatizar Hugo Chávez, citando Bolívar, “sou apenas uma débil palha arrastada pelo furacão revolucionário”. Grosso modo, a revolução bolivariana emana da resistência ao desmanche neoliberal, expressa na rebelião popular de fevereiro de 1989, o Caracazo, e no levante militar de fevereiro de 1992, que projetou a figura do jovem tenente-coronel Hugo Chávez; e ganhou uma dinâmica acelerada com a sua vitória eleitoral em dezembro de 1998, com 56,2% dos votos.

No início deste processo não ficaram nítidos os seus contornos. O programa do Movimento V República (MVR), agremiação eleitoral fundada por Chávez apenas um ano antes do pleito, era taxativo na defesa da soberania nacional; do uso da principal riqueza do país, o petróleo, para o bem-estar social; da integração das nações latino-americana. Mesmo assim, era bastante genérico ao definir os rumos destas mudanças. A alternativa ao modelo neoliberal, que havia levado à miséria milhões de venezuelanos, não era nítida nem consistente. Os limites e o fôlego deste projeto com forte viés nacionalista também não eram previsíveis.

O próprio Hugo Chávez, que sempre se apresentou como um ferrenho inimigo do receituário neoliberal, nunca explicitou o seu perfil ideológico. Em entrevista à socióloga Marta Harnecker chegou a teorizar: “Um capitalismo selvagem, como o qualifica o papa João Paulo II, não é humanizável. Mas, no caso venezuelano, com um governo como este, com uma Constituição como esta, com um povo que despertou como o nosso, com uma correlação de forças como a que temos, sim, é humanizável” [3]. Ao explicitar as bases teóricas do seu movimento, ele enfatiza que “a ideologia bolivariana está sustentada por princípios revolucionários, sociais, humanistas e igualitários... A ideologia bolivariana é antineoliberal”.

Ainda segundo Marta Harnecker, atenta estudiosa desta experiência sui generis, o processo bolivariano pode ser “catalogado ideologicamente como algo indefinido, porque não assume o marxismo como sua ideologia orientadora. É preciso aclarar, porém, que embora não se declara marxista, ele tampouco se declara antimarxista... Chávez busca fundamentar o seu projeto num ideário enraizado nas tradições nacionais... Trata-se de um núcleo ideológico democrático, que reivindica a soberania nacional, que é antiimperialista e antioligárquico; núcleo que, sem dúvida, é necessário enriquecer e aprofundar, mas que já contém um conjunto de idéias-chaves para potencializar o avanço do processo revolucionário” [4].

Cautela na economia

Eleito em dezembro, Hugo Chávez tomou posse em 2 de fevereiro de 1999 num país devastado por uma grave crise econômica. A queda abrupta do preço do petróleo precipitara a recessão. O barril de petróleo, que custava US$ 21,91 em janeiro de 1997, despencou para US$ 8,74 em dezembro de 1998. Totalmente dependente deste produto, a Venezuela afundou na pior degradação social da sua história. No discurso de posse, o novo presidente fez questão de espinafrar a herança maldita do neoliberalismo ao denunciar a existência de “uma taxa de desemprego real de 20%, que desmente as cifras oficiais de 11%, uma taxa de subemprego de 50% e um índice de mortalidade infantil de 28 por cada mil nascidos vivos”.

Diante da situação de vulnerabilidade da nação e do contexto mundial de hegemonia do neoliberalismo, Chávez optou por uma postura extremamente cautelosa no terreno econômico. No discurso de posse, ele procurou acalmar o deus-mercado. “Nós somos gente séria, o governo é um governo sério, que respeitará os acordos que se assinem e os investimentos internacionais que aqui chegarem... Nosso projeto não é estatista e nem tampouco vai ao extremo do neoliberalismo. Buscamos um ponto intermediário, de tanto Estado quando seja necessário e tanto mercado quanto seja possível. A mão invisível do mercado e a mão visível do Estado”. Desejava evitar novas turbulências econômicas e estancar a crescente fuga de capitais.

Este objetivo pragmático norteou o início do seu mandato. Tanto que ele preservou no cargo de ministra das Finanças uma antiga servidora do governo neoliberal de Rafael Caldera. O continuísmo também ficou patente na manutenção da política cambial, na introdução de duras medidas de ajuste fiscal e, inclusive, no compromisso de “reforçar o Banco Central em sua autonomia funcional, financeira e administrativa”. Como observa Maringoni, “os seculares privilégios das castas abastadas quase não foram tocados, os contratos mundiais firmados anteriormente são respeitados e o serviço da dívida pública segue sendo pago sem contestação”. O governo sequer reviu o nefasto programa de privatizações das estatais, que resultara na entrega das empresas de telecomunicações (Cantv), siderurgia (Sidor) e aérea (Viasa), entre outras.

Num primeiro momento, esta postura cautelosa até chegou a tranqüilizar as raivosas elites locais e levou o imperialismo a acreditar num possível enquadramento do novo governo. O jornalista inglês Richard Gott registra que, em 1999, “o embaixador dos EUA em Caracas, John Maisto, passou a maior do seu tempo tentando convencer Chávez a subscrever o tratado de promoção e proteção do investimento estrangeiro, que todos os demais países latino-americanos se viram obrigados a assinar”. O decreto 356 foi baixado em 3 de outubro para “prover investimentos e investidores, tanto nacionais como estrangeiros, de um marco jurídico previsível, no qual estes e aqueles possam desenvolver-se num ambiente de segurança”.

Ousadia na política

Mas se no terreno econômico predominou o continuísmo, Hugo Chávez apostou suas fichas em radicais mudanças no campo político. De forma planejada e ousada, buscou alterar a correlação de forças no país. Como não foi eleito num processo de ascenso do movimento social e nem possuía sólidas bases políticas, priorizou a mobilização popular para destruir as apodrecidas estruturas de poder. Desde janeiro de 1958, quando foi firmado o Pacto de Punto Fijo, a oligarquia local exercia rigoroso domínio no país, isolando a esquerda, cooptando o sindicalismo e compartilhando os aparatos estatais entre a Ação Democrática (AD, social-democrata) e o Comitê de Organização Política Eleitoral Independente (Copei, social-cristão).

Hugo Chávez decidiu deflagrar sua “revolução bolivariana” implodindo este edifício de poder excludente, viciado e corrupto. Num curto espaço de tempo, o novo governo promoveu seis pleitos nacionais com este intento: um plebiscito para convocar a Assembléia Constituinte; eleição dos deputados constituintes; nova eleição para presidente da República e governadores; referendo para aprovar a nova Constituição; eleição para prefeitos; e um plebiscito sobre a estrutura sindical. Ao mesmo tempo, costurou uma aliança cívico-militar que aproximou as Forças Armadas do povo. Numa operação delicada, Chávez se equilibrou entre a orientação econômica conservadora e a ação política radicalizada visando reforçar o papel do Estado.

A sua opção foi distinta de outros processos revolucionários no continente. No Chile, Salvador Allende adotou de imediato medidas econômicas estatizantes com base num programa que pregava a transição pacífica para o socialismo. Já a revolução bolivariana optou por um caminho bastante original, colocando em primeiro plano as mudanças institucionais. A prudência inicial no campo econômico foi compensada por uma ação radicalizada no terreno político. Evidente que esta opção refletia as mudanças na correlação mundial de forças, com a derrota do bloco soviético, a defensiva estratégica do proletariado e a ofensiva neoliberal sob o império dos EUA. Chávez gosta de comparar estas experiências, mas ressalta: “Enquanto a revolução chilena era pacífica e desarmada, a nossa, com o apoio do Exército, é pacífica e armada!”.

O imperialismo estadunidense e a oligarquia racista local, temendo perder seus privilégios, logo acusaram o tranco. A partir das acaloradas discussões na Constituinte, a oposição reacionária não dá mais trégua ao governo. Há uma inflexão no quadro político. Na Constituinte, concluída em dezembro de 99, a maioria bolivariana amplia a democracia, incorporando várias formas de participação popular – inclusive o inédito “referendo revogatório”, fixado no artigo 72. A nova Constituição define as bases para a reestruturação do corrompido Poder Judiciário e altera o nome do país para República Bolivariana da Venezuela – num ato de enorme simbolismo. Ela ainda amplia os direitos sociais e incorpora as demandas indígenas. Em 15 de dezembro de 1999, um referendo popular ratifica a nova Constituição com 71% de aprovação.

Momento de viragem

Outro momento de virada se deu em 13 de novembro de 2001, quando o presidente Chávez anunciou, em cadeia nacional de rádio e TV, um ousado programa de mudanças. Após intensa consulta à sociedade e a aprovação no parlamento, o governo ratificou 49 leis – entre elas, da Terra, Pesca e Hidrocarburantes. “O ato representou um verdadeiro cataclismo nos rumos da administração pública. O governo intervinha, de uma penada, em inúmeros dos pontos mais sensíveis da vida nacional, buscando concretizar vários itens da Constituição aprovada dois anos antes”, comenta Gilberto Maringoni.

Este pacote de medidas legislativas representou duro golpe na oligarquia. A Lei de Terras, com seus 281 artigos, afirma na exposição de motivo que “A Constituição pretende implantar os meios necessários para a eliminação integral do regime latifundiário, como sistema contrário à justiça, ao interesse geral e à paz social no campo”. Ela é incisiva contra as terras ociosas, exigindo a comprovação de seu uso, e fixa duros mecanismos para a sua expropriação. Já a Lei de Pesca restringe a ação predatória das corporações empresariais, ampliando de 3 para 6 mil a faixa marítima da pesca artesanal. O seu objetivo declarado é garantir “os 40 mil empregos diretos e os 400 mil indiretos” dos pescadores e defender o ecossistema.

Se estas e outras medidas atiçaram os proprietários, a Lei dos Hidrocarburantes provocou o ódio da elite parasitária e do imperialismo. Ao centralizar o controle estatal da atividade petroleira, mexeu na sua mina de ouro. Ela define que a exportação do petróleo, que antes servia apenas para enriquecer a ínfima parcela da sociedade, iria propiciar “o financiamento da saúde, educação, fundo de estabilização macroeconômica e investimento produtivo, de maneira que se obtenha apropriada vinculação do petróleo com a economia nacional, toda ela em função do bem-estar do povo”. Com 68 artigos, a lei reduz a autonomia da poderosa PDVSA (Petróleos da Venezuela S.A.), que sempre foi considerada “um Estado dentro do Estado” [5].

O conjunto destas leis significou uma guinada nos rumos da nação e selou o fim da convivência pacífica com a elite dominante, que promove o primeiro locaute patronal em dezembro de 2001. Através da mídia panfletária, ela passa a preparar freneticamente o fracassado golpe fascista de abril de 2002. O país passa, então, a ser o principal pólo de resistência no continente ao neoliberalismo e ao imperialismo. Em meio às duras refregas, ocorre uma notável alteração do programa econômico. Segundo Maringoni, “caso raro, na América Latina, de uma administração pública que, em meio a intermináveis tentativas de inviabilização, caminha do centro para a esquerda. De uma dinâmica difusa para uma maior nitidez de conduta”.

Notas

1- Gilberto Maringoni. “A Venezuela que se inventa”. Editora Perseu Abramo, SP, 2004. “A melhor obra publicada até aqui sobre o tema”, segundo Emir Sader, este livro é a principal fonte desta série de artigos.

2- Simón Bolívar (1783-1830) foi o estrategista da luta contra a dominação espanhola na América Latina. Oriundo da oligarquia, ele liderou a independência da Venezuela, sendo eleito seu presidente aos 37 anos. Internacionalista, dirigiu a guerra de libertação que resultou na fundação da Colômbia, Peru, Equador e Bolívia. Republicano e abolicionista, em 1816 extingui a escravidão na Venezuela. Em 1813 é aclamado “O Libertador”. Intelectual de vasta obra, ele escreveu: “Eu desejo, mais que qualquer um, ver formar-se na América a maior nação do mundo, menos por sua extensão e riqueza que por sua liberdade e glória”.

3- Marta Harnecker. “Hugo Chávez, un hombre, un pueblo”. Editora Mepla, Havana, 2002.

4- Marta Harnecker. “Venezuela: una revolución sui generis”. Mimeo, janeiro de 2003.

5- Pablo Hernández. “Petróleo: a razão principal dos EUA para derrubar Chávez”. Vermelho, 03/06/04.

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