terça-feira, 29 de agosto de 2017

A última fonte vai se esgotar?

Por Tarso Genro, no site Sul-21:

Ainda como Secretário Executivo do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, no início do Governo Lula, promovi uma série de debates públicos e outros mais reservados, sobre as influências da globalização na agenda de desenvolvimento do Brasil, que saia de um Governo com inflação alta, juros estratosféricos e taxas de crescimento irrisórias. Terminava o Governo FHC e iniciava o maior ciclo de prosperidade e distribuição de renda do país, nos últimos cinquenta anos. Ciclo que começou a esgotar-se já na segunda metade do primeiro Governo Dilma, cujos motivos não cabem, aqui, nesta curta crônica política.

Hoje, no pós-golpe, uma política econômica de transição do modelo liberal-rentista (que afinal venceu), para uma economia nacional de interdependência e cooperação com soberania na ordem global, é a grande esfinge a ser decifrada pela esquerda. Ela, a esfinge, até agora, nos mira com certa complacência e uma aberta ironia, mas nos diz que não é restaurando os velhos pactos de governabilidade, originários da república velha ou da transição democrática controlada, que vamos encontrar estes novos caminhos. O mundo mudou muito. O socialismo, a social-democracia, a República e o Estado de Direito, estão perante novos desafios, mais complexos e profundos, dos quais podem emergir novas formas de fascismo e também de dominação violenta, “dentro do direito”, sem rupturas.

Num desses debates-diálogos que promovíamos, convidei o professor Gilberto Dupas (1943\2009) – eminente intelectual ligado à “esquerda” do PSDB e ao Presidente Fernando Henrique – que vinha publicando estudos extraordinários sobre a globalização. Defendia um ponto de vista crítico, voltado para os efeitos da nova economia financeira do mundo sobre a “questão democrática” e as novas formas de legitimação do poder, nesta nova ordem. Sendo, o “Conselhão”, uma estrutura pública, com funções “públicas não-estatais” – já que as suas recomendações e propostas só tinham validade e publicidade quando vinham de acordos “concertados” entre os seus integrantes – era importante que ouvíssemos todas as vozes. Lembro, hoje, do Professor Dupas, quando revisito o seu brilhante “Atores e poderes na nova ordem global -Assimetrias, instabilidades e imperativos de legitimação” (2005 – Ed.Unesp).

Combino esta lembrança com a capa da Revista “Veja”, desta semana, que, ao contrário do que esta revista dizia, há algum tempo, sobre o ministro Gilmar Mendes – identificado antes como prova viva de que “ainda há Juízes no Brasil – agora aponta-o como o “O Juiz que discorda do Brasil”. Não fora o contexto de crise política, econômica e moral, que vivemos, esta capa seria apenas mais uma irrelevância manipulatória. Na quadra atual, porém, deve ser pensada como o ápice do cinismo, do deboche ao jornalismo informativo e, ao mesmo tempo do símbolo da decadência sombria do Estado Social de Direito e da sua representatividade, permitida pelo sistema político atual. Os partidos no poder, não só não dão mais direção para nada, mas tornaram-se micro-agências da corrupção sistêmica, erguida -hoje- à condição de base de uma governabilidade técnica, sem povo.

Quando “Veja” diz, “o Juiz que discorda do Brasil” ela sintetiza – porque aparenta ser verdadeira – toda a força do pacto hegemônico do sistema de poder corrupto que com o golpe aumentou a sua força sobre boa parte das instituições políticas do Brasil. Este novo poder que se instalou em nome da “luta contra a corrupção”, na verdade, visava golpear um Governo legítimo, para colocar o país no ciclo das reformas contra o Estado Social, que são orientadas pela ideologia e pelo programa neoliberal, em todo o mundo. E estas reformas exigem uma opinião pública domesticada, uma classe média passiva, um povo pobre que imagine que a nação se constrói só com seus sacrifício e partidos, ou que romantizem o passado, ou que imaginem que seus aparelhos sábios possam desenhar um futuro só a partir da imaginação “radical”.

Diz o Professor Dupas, no livro citado (pg. 116): “De onde os atores da economia global tiram legitimidade social e política para suas decisões estratégicas? Qual a natureza do seu mandato? Para justificar suas ações alegam racionalidade econômica e sucesso comercial. Beck (…) lembra que, afinal, o mandato da economia global se baseia no voto econômico dos acionistas, que se manifesta pelas altas e baixas de ações nos mercados financeiros mundiais. Ao consumidor só sobraria uma forma organizada de poder expressar seu direito de voto, ‘comprar ou não comprar’. (…) “Mas a globalização econômica permite, também, aos atores econômicos novos recursos de legitimação. Para maximizar seu poder eles necessitam reforçar as conexões entre capital e direito – ‘privatização’ do direito e da autoridade, novas regras e instrumentos legais que garantam a execução dos contratos e assegurem a regulamentação dos conflitos” (pg.117).

E, mais adiante: “Os acordos fazem os contratos dependerem de instâncias de arbitragem independentes dos Estados Nacionais, uma zona autônoma de direito que convive com a legislação política. A desestatização da legitimidade passa pela criação de um direito autônomo, transnacional, cuja função é permitir a legitimação -legal e não, social ou política- do capital.” Desnecessário dizer que o Estado Nacional cada vez mais desmantelado é refém do capital financeiro, que crescentemente suprime a soberania estatal com o controle, sem mediações,que exerce sobre a dívida pública, tanto a legítima como a ilegítima.

Na verdade, a acusação de “Veja” ao ministro Gilmar Mendes, é emblemática. As suas decisões contraditórias -hoje protegendo facções políticas que ele comunga através de um hiper-garantismo e, na época do “mensalão”, estimulando condenação sem provas – flagram a aproximação radical da economia com o direito. E o que permite esta aproximação – através de interpretações opostas da Constituição – é a defesa de um projeto político avesso ao Estado Social, que quer destruir todos os seus resquícios. Seu objetivo é a legitimação completa, como disse o Professor Dupas, “do capital’, expresso na utopia de direita do liberalismo sem Estado.

“Prender”, justa ou injustamente na época de José Dirceu e Delúbio – independentemente de estar de acordo ou não com o “direito posto”- significava fragilizar a esquerda e ajudar a dissolver o Estado Social. “Soltar”, hoje -independentemente de mais ou menos provas – significa prestigiar as reformas exigidas pelo capital e reforçar as formas de legitimação pelo alto, sem representação e sem povo. Dizer que o ministro Gilmar Mendes “hoje discorda do Brasil”, é como dizer que ele, em outras oportunidades, concordou com o Brasil por inteiro, “unido” pelas reformas do capital contra o mínimo de Estado Social construído a duras penas, no Brasil, a partir da Revolução de 30.

Não é de graça que o Professor Dupas também asseverou que “os grandes atores do jogo global sabem que só conseguem estar presentes em todos os mercados do mundo ao preço de turbulências permanentes.” (op.cit. pg.117). E elas estão aí, no jogo supremo das manipulações de consciência, que fizeram da campanha contra a corrupção, a corrupção como poder supremo. Agora já sem limites e sem prisões. Mas o preparo da exclusão de Lula das eleições presidenciais do próximo ano continua célere. Esta exclusão será o ápice do golpismo, da partidarização sem freio do Judiciário que, desequilibrando o jogo político do que resta de democracia no país, suicidar-se-á como última fonte de legitimidade do Estado de Direito.

* Tarso Genro foi Governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro da Educação e Ministro das Relações Institucionais do Brasil.

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