segunda-feira, 15 de maio de 2017

Golpe pode inventar Macron brasileiro

Por Paulo Moreira Leite, em seu blog:

Apenas o espírito abertamente reacionário dos tempos atuais explica o sucesso da palavra "centrista" para designar o novo presidente da França, Emmanoel Macron.

Sua aceitação mesmo no Brasil, país que deu quatro vitórias consecutivas ao Partido dos Trabalhadores nas eleições presidenciais entre 2002 e 2014, mostra a fantasia ideológica construída no país após golpe que afastou Dilma Rousseff.

Em tempos de maior lucidez e respeito pelas ideias políticas e pelo significado real das palavras, Macron seria chamado sem receio como aquilo que é -- um líder conservador, de direita, com um programa destinado a defender interesses e reconstruir privilégios das camadas superiores da sociedade francesa, enfraquecendo direitos e conquistas dos trabalhadores e da população em geral.

No país onde nasceram as noções "direita" e " esquerda ", no final do século XVIII, ao longo da campanha de 2017 a palavra "centrista" serviu para Macron dar conta de uma tarefa indispensável num candidato com seu perfil. Numa conjuntura onde as organizações do movimento operário conservam boa parte de sua força, ele precisava amortecer a resistência popular a sua candidatura, ganhando credibilidade junto a setores que serão prejudicados por seu programa de governo. O rótulo ajudou a transformar Macron no mito do "mal menor", aquele a que todos cidadãos de convicções democráticas são convocados a entregar o voto de qualquer maneira, como uma fatalidade com a qual é preciso resignar-se.

Na prática, o "centrista" funcionou como um salvo-conduto ideológico para impedir o crescimento de uma alternativa coerente contra o fascismo de Marine Le Pen e o Front National. Num universo onde a dissolução das palavras faz parte da destruição da política democrática, pois esvazia o debate político que deveria permitir escolhas através do voto, a fantasia "do Macron centrista" ajudou a bloquear a formação de uma alternativa viável de reconstrução das forças ligadas ao movimento operário e popular da França, em torno de Jean-Luc Mélenchon.

No ponto mais degradante de uma campanha adversa, Mélenchon foi irmanado a Marine Le Pen sob o guarda-chuva do "populismo", o que só é possível em situações onde a manipulação das palavras se faz impunemente.

Embora a matemática das urnas nem sempre seja uma expressão exata das verdades políticas, os números do primeiro turno mostram os limites do "mal menor." A soma dos votos obtidos por Mélenchon e o candidato do PS, Benoit Hamon, atingiu um total suficiente para excluir Marine Le Pen do segundo turno.

Nem a biografia nem as ideias de Macron tem alguma relação real com "centrismo," termo nascido nos debates dos partidos de esquerda do século XX, que servia para designar lideranças que hesitavam entre com uma revolução revolução socialista e as reformas de cunho social-democrata. Macron foi uma das principais âncoras da direita no interior do governo François Hollande, numa posição comparável a que Joaquim Levy exerceu no segundo mandato de Dilma Rousseff. Recrutado para a política depois de uma longa carreira no mercado financeiro - sua formação se fez no banco Rothschild, o que dispensa maiores apresentações - não deixou sinais significativos de hesitação durante sua passagem pelo governo.

Chegando a Ministro da Economia, firmou-se como um aliado invariável das propostas conservadoras que aprofundaram a crise economia e social da França, levando Hollande e o Partido Socialista à ruína. Não é um partidário da União Européia, como acontece com tantos franceses, a direita ou a esquerda, que cultivaram a utopia de um polo alternativo ao domínio norte-americano. É favorável a uma Europa unida mas subordinada aos interesses dos Estados Unidos. Com palavras mais sutis, chegou a denunciar como bolivarianos aqueles membros do ministério que resistiam a concordar com a venda da Alston, um dos últimos grupos industriais do país, para a General Eletric. Sua primeira medida, óbvia como os passos do governo Temer, será atacar os direitos dos trabalhadores. A segunda foi nomear um político de direita como primeiro-ministro.

No Brasil, a procura de um candidato "centrista" para 2018, já se anuncia como estratégia uma parcela do eleitorado de Lula a partir de um discurso destinado a enfrentar o imenso reconhecimento da população a seu governo, que se reflete nas pesquisas de opinião.

Existe até um concorrente, Jair Bolsonaro, para fazer o papel de Marine Le Pen de calças, contra quem se tentará pregar o voto contra o "mal maior."

Tenha o nome de João Dória, Luciano Hulk, ou qualquer outro, um traço é comum. O ar de "novidade", no sentido de mercadoria. A falta de uma presença nacional, de um perfil nítido, que permita uma reconstrução pelo serviço de marketing. E, certamente, a proteção da mídia amiga.

Falta saber o que vai acontecer com a candidatura Lula, porém.

A herança do PS francês foi dilapidada pelo governo François Hollande, que encerrou o mandato como protagonista de um fiasco irremediável e um isolamento absoluto, incapaz de deixar herdeiros críveis. No Brasil de 2017, Lula é seu próprio herdeiro - e o desastre Temer-Meirelles se encarrega de aumentar suas intenções de voto dia após dia.

O desgaste de Lula e do PT é real e ainda pode aprofundar-se na justiça-espetáculo da Lava Jato.

Mas não se transformou em desmoralização nem alcança o grau deprimente que envolve os adversários mais tradicionais.

O caminho para um "centrista" interessado em capturar seus votos irá depender de um clássico golpe dentro do golpe -- aquele que, depois de derrubar Dilma em 2016, tentará impedir Lula de concorrer em 2018.

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