domingo, 28 de agosto de 2016

Temer tenta rachar os sem-terra

Foto: Joka Madruga-Photojournalism
Por André Barrocal, na revista CartaCapital:

Desde a posse interina, Michel Temer prega a necessidade de “pacificar e unificar a nação”, mas suas pretensões têm tudo para conflagrar o País, em vez de acalmar. As reformas trabalhista e da Previdência, por exemplo, levaram centrais sindicais às ruas de São Paulo na terça-feira 16. No campo, não será diferente. Talvez seja até pior.

Afinados com os ruralistas, os planos de Temer prometem aumentar as tensões no campo, sobretudo na reforma agrária e na luta por terra. Ele quer liberar a venda de terra a estrangeiros, um convite à especulação fundiária, e distribuir de forma maciça títulos de propriedade a assentados, um estímulo à reconcentração agrária e mais lenha na especulação. Já cortou verba de programas como o de aquisição de alimentos da agricultura familiar e o de construção de casas no meio rural. E deixou no limbo uma agência nacional criada há apenas dois anos para dar suporte técnico aos camponeses.

Isso tudo enquanto abre as portas federais no setor fundiário ao partido Solidariedade e a seu presidente, Paulinho da Força, já processado por fraude na reforma agrária.

Em movimentos sociais rurais, já é possível perceber disposição para grandes mobilizações e ocupações de fazenda no governo Temer, a um passo de ser confirmado de vez peloimpeachment. O espírito de confronto é reforçado pela crença de alguns grupos, como o MST, de que o interino é um “golpista” e não tem legitimidade. Não é à toa que Temer recorreu ao Exército para monitorar o MST, revelação nascida de uma conversa gravada pelo ex-presidente da Transpetro Sérgio Machado com o senador peemedebista Romero Jucá, fugaz ministro do interino.

O acirramento dos ânimos pode levar à repetição de conflitos deflagrados na gestão Fernando Henrique Cardoso, nos anos 1990, quando houve o assassinato de 19 sem-terra em Eldorado do Carajás, no Pará. O homem da reforma agrária e das negociações com o MST na época, Raul Jungmann, agora é o ministro da Defesa.

Um requerimento do senador Randolfe Rodrigues, da Rede, cobra dele há quase três meses explicações sobre o monitoramento, mas nada de resposta. “Esse governo vem para retirar direitos. Se essa for a tônica, nossa negociação será em cima de mobilização, e aí haverá tensão”, diz Marcos Rochinski, coordenador da Fetraf, federação dos trabalhadores na agricultura familiar.

Para contornar o terreno minado, Temer tenta rachar os camponeses, especialmente os sem-terra, ao buscar um interlocutor entre eles. Pinçou José Rainha Junior.

Expulso do MST há uma década, condenado em 2015 a 31 anos de prisão por extorsão, estelionato e formação de quadrilha, Rainha é um conhecido militante baseado no Pontal do Paranapanema, em São Paulo. Vinte dias após assumir o governo provisório, Temer recebeu-o no Palácio do Planalto. Um encontro conveniente para ambos.

Rainha rejeita o “Fora Temer” do MST. Achava inevitável a cassação de Dilma Rousseff, embora tenha subido em um carro de som anti-impeachment no dia da votação do processo pelos deputados, em abril. Ao topar sentar-se com o interino para negociar, apesar de ver nele o representante de uma “direita reacionária”, talvez consiga capitalizar o que o governo fizer pelos camponeses.

E assim, quem sabe, transformar sua Frente Nacional de Lutas (FNL) em um grande movimento de massas. “A Dilma cometeu muitos equívocos e não vai voltar, os movimentos sociais vão discutir com quem? Não temos força para impor a nossa pauta”, diz.

A Temer, Rainha pediu a volta do Ministério do Desenvolvimento Agrário, fechado de cara pelo interino, o reforço do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e a demarcação de terras indígenas e quilombolas. Os acenos positivos do peemedebista até aqui são só palavras. “Se o governo não fizer o que foi combinado, vai ser guerra total”, diz ele, a planejar ocupações de fazendas e de sedes regionais do Incra.

A guerra projetada por Rainha parece já ser uma realidade para o MST, como se nota em declarações de seu líder, João Pedro Stedile. No início do mês, durante o início de uma marcha de jovens sem-terra, ele afirmou que “o governo golpista do Temer na verdade representa os interesses do poder econômico internacional aliado com setores da burguesia brasileira” e “exigirá esforço e mobilização de toda a classe trabalhadora, das forças nacionalistas, inclusive das Forças Armadas”.

Em julho, em um evento em Minas, Stedile disse que “o impeachment não tem nada a ver com os erros da Dilma” nem com “pedaladas fiscais”, mas “com um plano das elites para impor uma política neoliberal e reduzir os direitos dos trabalhadores”. E mais: “Vamos dar um aviso às empresas: se esse governo tomar essa medida irresponsável, não se atrevam a comprar terras no Brasil, porque nós vamos ocupar todas as áreas que forem cedidas ao capital estrangeiro”.

Dias antes desse último comentário, o interino aproveitara um almoço com a bancada ruralista para abrir o jogo sobre sua intenção de liberar a aquisição de terras por forasteiros. Contou que o assunto inclusive já estava em exame no governo. “Certos padrões que se verificavam há 25 anos não podem prevalecer. Teremos logo uma solução para esse tema.”

A negociação com gringos está travada desde 2010, graças a um parecer da Advocacia-Geral da União (AGU), que considerou válidas e de acordo com a Constituição de 1988 diversas restrições contidas em uma lei de 1971. Na época, o governo (Lula) temia uma invasão chinesa. Uma lei proposta em 2012 pela bancada ruralista e hoje a tramitar na Câmara dos Deputados tenta acabar com as restrições.

No governo, o tema é controverso. O ministro da Agricultura, Blairo Maggi, apoia. Acha que favorecerá a concessão de empréstimos internacionais no País. Os bancos estrangeiros, segundo o ex-rei da soja, poderiam aceitar terras como garantia em financiamentos. Sem a restrições legais, as instituições financeiras ficariam com a terra dada em garantia, em caso de calote do devedor.

Já as Forças Armadas são contra, por razões de segurança nacional e de fronteira. Manifestaram sua posição em um debate na Câmara realizado em julho para discutir a proposta dos ruralistas.

O representante do Ministério da Defesa no debate, o capitão de mar-e-guerra Paulo Cezar Garcia Brandão, da área de Inteligência Estratégica do Estado-Maior das Forças Armadas, fez várias críticas ao projeto. Contém dispositivos, disse, que “consideramos uma ameaça à soberania nacional”. Para ele, o Estado não pode deixar de controlar a posse de áreas do País por estrangeiros “num momento em que a terra é considerada um ativo econômico de grande importância mundial”.

Com o real barato ante o dólar, a permissão adubará a especulação fundiária. Um cassino que tende a se intensificar com outro plano do peemedebista. Promover, a partir de setembro, reta final de eleições municipais, um festival de entrega de títulos de propriedade a assentados. “Tudo indica um governo subordinado ao agronegócio. A disputa pela terra já existe e vai continuar.

Vamos ver conflitos”, alerta Patrus Ananias, último ministro do Desenvolvimento Agrário de Dilma. O Brasil, afirma, é um país de municípios rurais, cerca de 70% possuem menos de 20 mil habitantes, motivo para elaborar políticas públicas que mantenham as pessoas no campo, não que as expulsem.

A titulação desenfreada é um punhal nas costas do MST. Para o movimento, ela mercantilizaria a reforma agrária, ao dar respaldo jurídico ao comércio de lotes, e estimularia a reconcentração, ao permitir a compra de terrenos por latifundiários. Pior. Incentivaria uma atitude individualista dos camponeses, uma ameaça à sobrevivência do movimento, dependente da ação coletiva.

O Planalto não esconde o impacto no adversário. “A gente sabe da organização coletiva que tem dado cobertura a essa inexistência do título”, afirmou há alguns dias no Senado o ministro Eliseu Padilha, da Casa Civil, a quem as ações da reforma agrária estão momentaneamente subordinadas. “A nossa preocupação, então, é independentizar (os assentados).”

Apesar da má vontade, o MST e algumas entidades negociaram com o governo Dilma algum tipo de titulação, com condições controladas, por pressão de muitos pequenos agricultores. O resultado foi um decreto assinado pela petista pouco antes do afastamento do cargo. A transferência hereditária da terra foi autorizada e sua venda após dez anos do assentamento, também. A dúvida é se Temer seguirá o decreto ou vai tirar da cartola regras diferentes. Consta que recebeu uma carta do TCU a sugerir a revogação do decreto. A ordem do chefe, segundo Padilha, é titular “o máximo possível”.

A titulação maciça é uma das divergências de José Rainha com Temer, apesar de o líder sem-terra aceitar negociar com o interino. Idem para a aquisição de terras por estrangeiros. Rainha também critica o aparelhamento do Incra pelo Solidariedade, e não por acaso ações recentes de sua Frente Nacional de Lutas cobraram, com faixas em prédios públicos, que o partido fique longe do órgão.

A sigla infiltra-se na área federal da reforma agrária desde o início da gestão interina. Sucessora do finado MDA, extinto por pura propaganda de um governo provisório desejoso de vender-se austero, a Secretaria Especial de Agricultura Familiar e Desenvolvimento Agrário tem à frente um indicado do deputado federal Zé Silva, do Solidariedade de Minas.

Ele próprio assumiria, se não tivesse de renunciar ao mandato. Agora é cotado para ministro quando a pasta ressuscitar pós-impeachment, volta prometida por Padilha no Senado. O presidente do Incra, Leonardo Goés Silva, é servidor da repartição, mas está no cargo graças à bênção do Solidariedade.

Quem comanda as negociações do partido com Temer é Paulinho da Força, presidente da legenda. O deputado, que considera o colega e réu Eduardo Cunha “a pessoa mais correta que já encontrei na vida”, faz teatro nas relações com o interino. Foi às ruas na terça 16 protestar contra as reformas trabalhista e da Previdência, mas atrás da cortina acerta-se com o peemedebista. Emplacou um filho, Alexandre Pereira da Silva, no posto de superintendente do Incra em São Paulo.

Qual seria o interesse da família Pereira da Silva na reforma agrária e no Incra, dono de uma verba anual de cerca de 1 bilhão de reais para desapropriações e financiamentos? Uma espiada na ação penal 421, aberta em 2007 no Supremo Tribunal Federal (STF), talvez ajude a explicar. Nela, Paulinho era réu por estelionato, falsidade ideológica e falsificação de documento particular em um caso de fraude na reforma agrária. Segundo o Ministério Público, a Força Sindical teria ajudado a favorecer em 1998 os donos de uma fazenda a receber do Banco da Terra uma quantia superfaturada pela desapropriação. A central era e é presidida por Paulinho. Menos mal para ele o Supremo não ter achado provas de sua participação direta no trambique. Foi absolvido em abril.

Outro mau presságio sobre o Solidariedade no Incra: a superintendência da Paraíba foi entregue a um condenado a 30 meses de cadeia por desvio de verba pública da educação. O engenheiro civil e ex-prefeito Solon Alves Diniz, que recorreu da sentença, é sogro do padrinho de sua nomeação, o deputado federal paraibano Benjamin Maranhão, do Solidariedade. A identidade entre eles extrapola relações familiares. O parlamentar é réu na ação penal 616 no STF, acusado de corrupção em um escândalo famoso, o da Máfia dos Sanguessugas.

No Rio, a chefia do órgão está com Carlos Castilho do Nascimento, líder comunitário urbano indicado pelo secretário de assuntos jurídicos do Solidariedade, Tiago Cedraz. Este também é a mão por trás da escolha do diretor de Gestão Administrativa do Incra, Juliano Pasqual. O diretor tem intimidade com a família Cedraz, mas com a reforma agrária... É cientista político de formação e trabalhou como assessor parlamentar no gabinete do pai de Tiago, Aroldo Cedraz, antes de este se tornar ministro do Tribunal de Contas da União.

Será que o Cedraz pai, hoje presidente da corte de contas, ajudará Temer a resolver um pepino por lá? Por ordem do TCU, a reforma agrária está paralisada desde abril. Nada de selecionar candidatos a assentado, entregar lotes ou liberar crédito a quem já tinha um pedaço de terra. Ao cruzar dados do programa de reforma agrária com bases públicas de informação, uma auditoria detectou indícios de irregularidade em cerca de 500 mil processos de assentamento. Coisas como distribuição de lotes a políticos, servidores e crianças ou repasses duplicados de verba. Prejuízo potencial de 2,8 bilhões de reais.

A decisão atrapalhou os planos de Dilma, que no primeiro mandato consagrara-se como pior presidente na reforma agrária desde o fim da ditadura e, no segundo, tentou inverter a rota. O Incra chiou bastante na ocasião. Para o órgão, “a maioria das discrepâncias indicadas pelo órgão de controle externo se origina de cruzamento de dados que parte de premissa não compatível com a política de reforma agrária”. Não haveria, por exemplo, problema em um assentado ter se tornado servidor ou político depois de receber a terra.

Antes da decisão do TCU, o governo comprometera-se a assentar 120 mil famílias até 2018. É esse o último cálculo oficial sobre o número de acampados no País, pouco mais da metade no Nordeste. Estimativas internas do Incra indicam que já seriam 137 mil famílias. E com viés de alta. Motivo: a ampliação do desemprego urbano e o fim de grandes obras públicas iniciadas nos últimos anos, situações que devolveriam à zona rural filhos de agricultores familiares.

Os planos de Temer e o avanço do exército de acampados formam uma combinação inquietante.

1 comentários:

Mariana Lobo disse...


Como sempre as delações trazendo a tona os fatos que são omitidos da população!