segunda-feira, 22 de agosto de 2016

Orçamento seletivo de Michel Temer

Por Maria Carolina Trevisan, na revista Brasileiros:



Há quase três meses no poder, o governo provisório decidiu adotar a lupa do equilíbrio das contas públicas para determinar suas prioridades. Esse caminho tem implicações importantes, não apenas em impactos econômicos. As consequências serão sentidas pela parcela mais vulnerável de brasileiros. São mudanças de recursos e acesso à Saúde e Educação - direitos sociais garantidos pela Constituição -, nas ações de combate à pobreza, segurança pública, segurança alimentar e agricultura familiar, entre outras.

A justificativa é uma retórica simplista que afirma que “a Constituição não cabe no Orçamento”.

A tendência conservadora vai além das contas públicas e atravessa todos os ministérios, numa ofensiva (às vezes silenciosa) que se reflete em recuos nos direitos sociais e humanos. Para analisar esses efeitos, a equipe da ex-ministra do Desenvolvimento Social Tereza Campello, que comandou a pasta no governo Dilma Rousseff e é também uma das técnicas responsáveis pela concepção do Programa Bolsa Família, montou uma plataforma que tem como objetivo chamar a atenção para esses retrocessos. É o “Alerta Social – Qual Direito Você Perdeu Hoje?”, que detectou, até o final de julho, mais de 40 ameaças à área social. Cumpre o papel de registrar esses acontecimentos em uma linha do tempo. “Como a velocidade da desestruturação do Estado e do desmonte é muito grande, o ‘Alerta Social’ é uma ferramenta fundamental para contar a história da desorganização do Estado brasileiro”, explica Campello.

A ferramenta é uma maneira de expor também sua opinião diante das tentativas de silenciar os ganhos sociais do governo Dilma. “Acho dramático que durante esse período, com tantas mudanças sociais, a imprensa tradicional não tenha me procurado para escutar o contraditório. Não existe a menor preocupação”, revela a ex-ministra. “Não é necessário concordar com a minha opinião. Mas não sou só uma ex-ministra que comandou a área do desenvolvimento social por cinco anos, com reconhecimento no Brasil e no mundo. Fui também a técnica que estava na origem do trabalho do Bolsa Família. Desapareci, a história do Bolsa Família, de 14 anos, desapareceu. Isso é muito grave.”

É inquestionável o sucesso do programa Bolsa Família. Quando começou, em 2003, o Brasil tinha 23,6% de sua população em situação de pobreza e 8,2% em contexto de extrema pobreza (famílias com renda abaixo de R$ 77 mensais por pessoa). Os dados mais recentes, de 2014, demonstram que a pobreza caiu a 7% e a extrema pobreza a 2,5% do total de brasileiros. Os que mais sentiram essas mudanças foram as crianças de até 5 anos.

Significa que 36 milhões de pessoas saíram da linha de extrema pobreza e entraram para o sistema de garantia de direitos do Estado: passaram a ter acesso à Saúde, Educação (condicionalidades para integrar o Bolsa Família), Assistência Social e alimentação. É muito mais que a transferência de renda e tem impactos amplos e profundos. Por exemplo, no primeiro semestre do ano passado, 5,5 milhões de crianças receberam atenção médica básica, de acordo com o Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário; a mortalidade infantil por desnutrição teve queda de 65% nos municípios onde o Bolsa Família mais se concentra, segundo a ONU; entre 2002 e 2014, a fome no Brasil diminuiu 82%, de acordo com o relatório O Estado da Insegurança Alimentar no Mundo 2015; o déficit de estatura, reflexo da desnutrição, das crianças beneficiárias do programa caiu pela metade, indica estudo dos ministérios da Saúde e Desenvolvimento Social com 360 mil crianças entre 2008 e 2012; cerca de 99% das mulheres inscritas no Bolsa Família recebem acompanhamento pré-natal. Com a melhora nas condições de vida, por volta de 3,1 milhões de famílias se desvincularam espontaneamente do programa.

Do ponto de vista da governança, o Bolsa Família também estabeleceu parâmetros complexos que correm o risco de ser desarticulados. Os programas do governo eleito, de todos os ministérios, eram integrados e transversais. “Há, neste momento, uma tentativa de desmembrar e isolar as ações. Construímos um ambiente sofisticado de ação integrada entre Educação, Saúde e Assistência Social. E isso é muito fácil de desorganizar, desmontar, basta não estar mais atento e não valorizar esse trabalho”, alerta Campello.

Não é o Bolsa Família que pesa sobre o Orçamento da União. A dotação de R$ 28,1 bilhões para o programa foi aprovada em agosto de 2015 por deputados e senadores. Esses gastos representam 0,46% do PIB do País ao ano.

Saúde e Educação

Movimentos recentes do governo Temer indicam que o que deve guiar os investimentos públicos será o congelamento do teto de gastos, Proposta de Emenda Constitucional (PEC 241/2016) anunciada em 15 de junho pelo ministro da Fazenda, Henrique Meirelles. A medida será votada no Congresso e propõe congelar despesas em todas as áreas por 20 anos. Os gastos do ano seriam corrigidos pela inflação do ano anterior. Segundo Meirelles, caso não seja aprovada, haverá aumento de impostos.

As despesas em Saúde e Educação também seriam reguladas pela PEC. Para investir acima da inflação, o governo teria de remanejar recursos de outra área. “Haverá vinculação das despesas da saúde e educação a esse teto”, afirmou Meirelles. Atualmente, esses gastos da União são vinculados a percentuais mínimos da receita.

É uma medida de austeridade. Tende a cortar benefícios sociais e a compreender o desenvolvimento com foco na redução de gastos e não na diminuição da desigualdade. Essa corrente defende que a dívida pública não pode aumentar mais, sob pena de reduzir investimentos e catapultar para gerações futuras prejuízos graves de emprego e renda. O outro lado sustenta que há ajustes tributários que poderiam preservar os programas e políticas sociais e ao mesmo tempo ajudar a reduzir a dívida pública.

“Ao congelar o gasto federal, a PEC 241 desestrutura o financiamento da política social brasileira ao eliminar a vinculação de receitas destinadas à educação e ao orçamento da seguridade social, que compreende as políticas de saúde, previdência e assistência social”, escreveu o professor de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Paulo Daniel Arias Vazquez, doutor em Desenvolvimento Econômico pela Unicamp, em artigo publicado na Plataforma Política Social. “Trata-se de um duro golpe que quebra a espinha dorsal da Proteção Social no Brasil, estabelecida na Constituição de 1988 e ainda em consolidação”, concluiu, a partir de um estudo que simulou os efeitos da proposta.

O governo Temer dá também outros indícios de um viés conservador. Ideias como um plano de saúde popular, que ameaça a universalidade do sistema público de saúde, vão marcando os primeiros meses de governo interino. Para o ministro da Saúde, Ricardo Barros (PP-PR), o conceito de direito à Saúde também precisa se adequar aos limites orçamentários e essa seria uma maneira de desafogar os gastos com o Sistema Único de Saúde (SUS). “Quando uma pessoa tem um plano, ela está contribuindo para o financiamento da Saúde no Brasil”, disse Barros. “Ela participa dos custos de atendimento da Saúde. Como os planos terão menor cobertura, parte dos atendimentos continuará sendo feita pelo SUS.”

O ex-ministro da Saúde José Gomes Temporão, que ocupou o cargo de 2007 a 2011, considera “uma barbárie” essas sinalizações do governo Temer. “Pela primeira vez temos um ministro que fala de maneira clara que quem vai ditar uma política de Saúde é o mercado”, constata Temporão, que foi um dos criadores do SUS. Grazielle David, assessora política do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), organização da sociedade civil que trata de direitos humanos, afirma que o resultado será a precarização do sistema. “Enquanto as demandas sociais aumentam, com o crescimento e envelhecimento populacional, e com novas tecnologias de saúde cada vez mais caras, a proposta de um novo modelo fiscal que reduz investimentos no setor destina o povo brasileiro à morte com o sucateamento definitivo do SUS”, alerta Grazielle, mestre em Saúde Coletiva e especialista em orçamento público, direito sanitário e bioética.

Na Educação, o governo Temer também acena com mudanças que parecem privilegiar o setor privado. Dos 12 novos nomes indicados para o Conselho Nacional de Educação pelo presidente provisório, após revogar grande parte das indicações de Dilma Rousseff, quatro são pessoas ligadas à iniciativa privada. “Estamos diante de um processo de focalização sobre um determinado nível escolar e privatização dos demais”, afirma Sergio Haddad, economista, doutor em Educação e coordenador geral da ONG Ação Educativa. “Há também um aceleramento de uma lógica de condenação e vigilância do papel do professor do ponto de vista ideológico e que entende o aluno como mero receptor de conteúdo”, completa. Haddad acredita que um dos resultados será a falta de diversidade nas escolas e universidades.

Diante desse cenário, a situação é preocupante. Tramita no Senado o Projeto de Lei 192/2016, do senador Magno Malta (PR-ES), que implementa a “Escola sem Partido” e impede o exercício do pensamento crítico no ambiente escolar. Apesar de negar que apoia a proposta, o ministro da Educação, Mendonça Filho (DEM-PE), em seu primeiro encontro com representantes da sociedade civil, recebeu o ex-ator Alexandre Frota e participantes do movimento Revoltados Online, defensores da “Escola sem Partido”, tema que teria sido tratado durante a reunião no ministério.

Políticas públicas

A extinção do Ministério do Desenvolvimento Agrário é um sinal óbvio de escolha de prioridades. Com a mudança, as políticas públicas voltadas à agricultura familiar foram alocadas em secretarias especiais ligadas à Casa Civil, assim como o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), que antes da admissibilidade do impeachment estava no MDS. “Pelo sucesso na erradicação da fome e pelos avanços conquistados em termos de segurança alimentar, tornando-se uma referência internacional, é fundamental que o Brasil mantenha sua capacidade de executar e aprimorar políticas públicas no campo da agricultura familiar resultantes de diálogo entre governo, movimentos e atores sociais”, diz Jorge Romano, coordenador executivo da ActionAid no Brasil, doutor em Ciências Sociais e Desenvolvimento e especialista em desenvolvimento rural. A Action Aid é uma organização internacional que atua no combate à pobreza. Fundada na Inglaterra em 1979, está no Brasil há 17 anos e atua em 13 estados.

No mesmo caminho, a pasta de Direitos Humanos perdeu status de ministério e está sob direção do Ministério da Justiça. Essa reorganização, com o perfil do ministro, Alexandre de Moraes, coloca os direitos humanos no guarda-chuva da segurança pública, e não o contrário. Traz de volta resquícios de uma política que tratava a questão social como “caso de polícia”, herança do ex-presidente Washington Luís (1926-1930). Sinaliza para a possibilidade de apoio à proposta que aumenta a pena de adolescentes que cometerem crimes hediondos, além de reduzir a maioridade penal nesses casos. A PEC 33/2012, do senador Aloysio Nunes (PSDB-SP), aguarda desfecho no Senado e trata exatamente dessas diretrizes. “No campo dos direitos humanos, o propósito é radicalizar o projeto conservador”, define o economista Eduardo Fagnani, professor da Unicamp, para quem o presidente interino pratica a “democracia de resultados”.

O quadro atual se afasta muito da teoria de um dos grandes intelectuais brasileiros, o economista Celso Furtado. Segundo Furtado, “o que caracteriza o desenvolvimento é o projeto social subjacente. O crescimento, tal qual o conhecemos, funda-se na preservação dos privilégios das elites que satisfazem seu afã de modernização. Quando o projeto social dá prioridade à efetiva melhoria das condições de vida da maioria da população, o crescimento se metamorfoseia em desenvolvimento. Ora, essa metamorfose não se dá espontaneamente. Ela é fruto da realização de um projeto, expressão de uma vontade política.” Entre Celso Furtado e a República Velha, o governo de Michel Temer dá mostras de escolher o segundo caminho no que diz respeito aos direitos e às políticas sociais.

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