sexta-feira, 24 de junho de 2016

A marcha do retrocesso neoliberal

Por Tatiana Carlotti, no site Carta Maior:

Entre os dias 15 e 16 de junho, a Fundação Perseu Abramo (FPA) promoveu o seminário “O Brasil do Golpe: o Plano Temer sob análise”. Na pauta, o desmonte das políticas sociais, culturais e emancipatórias (leia mais aqui) e, evidentemente, o retrocesso neoliberal na economia.

A subordinação externa do país e a política econômica, imposta pelo governo golpista, foram debatidas por Arno Augustin (economista e ex-secretário do Tesouro Nacional), Gilmar Mauro (dirigente nacional do MST) e Giorgio Romano (Universidade Federal do ABC - UFABC).

Ao analisar a eficácia da política econômica, em curso, Augustin foi categórico: “todos os dados econômicos mostram que a política econômica recessiva, de diminuição do tamanho do Estado, gera piora nas contas públicas e aumento do desemprego. Ela não gera crescimento econômico”.

A saída é justamente o contrário, apontou, ao explicitar como os governos Lula e Dilma, entre 2003 e 2014, superaram as restrições ao crescimento econômico, a partir de “um Estado que atuou conscientemente” estimulando os investimentos no país a partir do financiamento, a baixo custo, pelos bancos públicos; de melhorias na infraestrutura; e da distribuição de renda, através das políticas sociais, criando um dinâmico mercado interno.

Neste período, destacou, o Tesouro Nacional emprestou quase R$ 500 bilhões ao BNDES. “Esses recursos foram jogados na economia sob a forma de financiamentos com baixo custo que fazem com que o país tenha – e teve - melhorias nos seus níveis de formação bruta de capital”. Essas medidas, explicou, “estavam criando um Brasil soberano”, capaz de “trabalhar com um crescimento de médio e longo prazo mesmo em situações de crises e difíceis”.

O golpe, porém, encerrou este processo.

“O que estamos vivendo é uma tentativa de recolocar o Brasil em condições de não crescimento, impossibilitando a retomada dos investimentos”. Um exemplo é o impacto perverso nos investimentos da atual taxa de juros Selic - a 14,25%.

Concessões e falsas ilusões

Augustin também criticou a política econômica adotada pelo governo Dilma em 2015. Em sua visão, após a eleição, as medidas adotadas na seara econômica “já prenunciavam algumas coisas que hoje estão bem mais avançadas e bem mais radicalizadas no governo Temer”.

Ponderando que a concessão se tratou de um recuo tático, “decorrente da pressão de setores empresariais e financeiros que estavam impondo um programa que ganhou a sua versão máxima depois do golpe”, o ex-secretário do Tesouro foi taxativo: “certas concessões têm responsabilidade grande no que aconteceu, mas, certamente, elas não justificam o golpe”.

Em sua avalição, agora é o momento de “propor à sociedade brasileira, com firmeza, o que faz o Brasil crescer a médio e a longo prazos”. E, sobretudo, aprender a não ter ilusões, como a de acreditar que “comportar-se segundo as regras da especulação financeira vai gerar algum resultado positivo. Não vai”.

Augustin destacou, ainda, dois aspectos que, embora não justifiquem, explicam a forte reação dos setores financeiros contra os governos petistas: a queda da Selic que, em 2012, chegou a 7,25% (metade do valor atual); e a diminuição do espaço de investimentos das instituições financeiras privadas no país.

Em 2015, as instituições financeiras privadas respondiam por 66% do que era emprestado no país, já as públicas representavam 34%. Em 2014, ocorreu uma completa inversão: as públicas respondiam por 54% dos recursos emprestados, enquanto as privadas representavam 46%. “Essa mudança de comportamento fez com que as públicas ganhassem mercado significativamente”, explicou.

Em sua avalição, “um mercado financeiro perdendo espaço (prevalência do sistema financeiro público sobre o privado) e uma Selic baixa mexeram, evidentemente, com a especulação financeira e o rentismo, tradicionalmente fortes no Brasil. Isso gerou uma reação muito forte que acabou no golpe”.

Ameaça Temer

Augustin também analisou algumas medidas econômicas anunciadas pelo governo interino – e ilegítimo – de Michel Temer. Entre as mais preocupantes, destacou o teto para os gastos públicos nas áreas da Saúde, Educação, Ciência e Tecnologia. “Uma política que, de forma alguma, constrói desenvolvimento em médio e longo prazos”, apontou.

Ao mencionar o gasto de R$ 500 bilhões do governo federal apenas com o pagamento de juros da dívida, dada à alta taxa de juros Selic, ele destacou que esse montante, pago em juros, “é muito mais relevante do que o ganho que, eventualmente, se terá em termos fiscais com o teto dos gastos primários em Educação, Saúde, Ciência Tecnologia”.

Ele também destacou que boa parte das pessoas acredita que dinheiro gasto em juros é diferente do montante gasto em Educação, Saúde etc. “Não é. É dinheiro igual ao outro. Não há nenhuma diferença”.

Para que o golpe seja derrotado, avaliou, “é preciso mostrar à sociedade uma política econômica de crescimento que permita um Brasil com maior soberania como o país pode ter, deve ter e vinha tendo”.

“Agora é o momento de reagir à contraofensiva neoliberal, com a força que temos de mobilização e a força de um programa econômico e social que já demonstrou ser o melhor para o Brasil”, complementou.

Um político no comando do Itamaraty

Na sequência dos debates, Giorgio Romano, professor de relações internacionais na Universidade Federal do ABC (UFABC), analisou as mudanças na política externa brasileira, destacando a atuação de José Serra à frente da pasta de Relações Exteriores.

“Ele dá um sentido à política externa totalmente distorcido e limitado”, apontou Romano, citando uma série de medidas recentes que mostram, claramente, a intenção do tucano de transformar o Itamaraty em “um outro núcleo para fazer política econômica e se projetar”.

Entre elas, o deslocamento da APEX (agência que faz promoção da exportação, com forte presença no exterior) do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio (MDIC) para o Itamaraty, ampliando consideravelmente a receita do órgão. E, também, a tentativa do novo ministro em ser, também, o secretário executivo da Câmara de Comércio Exterior (CAMEX) que passaria à área presidencial.

Romano também chamou a atenção para o discurso de posse do novo ministro: “superficial, com muito marketing e poucas propostas viáveis ou concretas”. Desse discurso, destaca três pontos principais: o anúncio de mudanças em relação a algo que nunca existiu; a continuidade política do que já estava em curso, mas é apresentado como algo novo; e, efetivamente, o que há de novo.

Do primeiro ponto, Romano avaliou a notória obsessão do tucano em desconstruir a “política altiva e ativa de país” dos governos Lula e Dilma. Com forte apoio da imprensa, Serra vem construindo a ideia de que os governos petistas promoveram uma política externa “megalomaníaca” e “ideológica”, responsável pelo “isolamento do país”.

No cerne do discurso, o mote: “antes existiam preferências ideológicas na política externa brasileira; mas, agora, será trabalhada a ideia de Estado e Nação”. Curiosamente, analisa Romano, durante os governos Lula e Dilma, foram os diplomatas e não os políticos que estiveram no comando do Itamaraty. Agora, porém, “há um político, com intenção política, dizendo que vai defender uma política externa independente”.

Outro discurso disseminado, internamente inclusive, é o do esvaziamento do Itamaraty. Esquecem, afirma Romano, que durante os anos Lula houve “um forte aumento de vagas e concursos no Itamaraty” e que a “política externa ganhou um enorme peso político”. Exemplos não faltam: “a forma como o Brasil entrou nos BRICS, no G-20 e ganhou a votação para estar na frente da FAO e da OMC”.

Apropriação de acordos já firmados

Romano também destrinchou as “novas medidas” anunciadas pelo ministro Serra. “Esses acordos bilaterais, praticamente acordos e solicitações de investimentos, com o Chile, com o México, com a Colômbia e com o Peru foram assinados com o Governo Dilma”.

Outro exemplo citado foi a negociação entre o Mercosul e a União Europeia. “Essa era uma política do governo Lula. A oferta do Mercosul foi feita no dia anterior à votação que tirou a Dilma [ do poder]. O Brasil trabalhou esse acordo, que só não avançou pela insistência da União Europeia. Agora o Serra vai para Paris: ‘eu vou resolver a parada’. Dias depois, o Estadão publica uma citação dele dizendo que o obstáculo do acordo não foi o Mercosul, mas a União Europeia”.

Já em termos de “novidades” no Itamaraty, o professor de relações internacionais apontou o avanço do conservadorismo na política externa. Em sua avaliação, “passadas as eleições municipais, teremos um governo muito mais conservador, mais conservador do que o governo Fernando Henrique”.

A diferença, apontou, está na visão de mundo:

“Nós olhávamos para um mundo em transição, rumo a uma multipolaridade (diminuição da hegemonia dos Estados Unidos) que poderia dar um espaço maior ao Brasil, caso o país se articulasse aos países do Sul, para ter mais força de negociação com os países do Norte. Daí toda a lógica da UNILA, UNASUL, participação no G-20”.

“Não há dúvidas de que o atual governo é “muito mais simpático ao capital norte-americano”, concluiu.

Tempos de luta

Em sua análise, Gilmar Mauro, dirigente do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), levantou uma série de questões voltadas ao fortalecimento da resistência contra o golpe.

Entre elas, a necessidade de novas formas ofensivas para o enfrentamento da ordem do capital em escala planetária. “Não temos uma Internacional, atuante e ativa, neste momento que mais carecemos. E carecemos não só do ponto de vista ideológico, mas econômico corporativo concreto”, apontou.

Ao analisar o fim de um cenário no Brasil, “calcado na demanda internacional das commodities agrícolas, no investimento público direto na economia e na abertura de crédito geral à população”, ele apontou a quebra do pacto entre a classe trabalhadora e a elite brasileira. E lembrou: “não fomos nós que rompemos [o pacto]”.

Destacando que, ao longo deste período, “o capital privado não investiu na economia brasileira, disputando, sempre e cada vez mais, os ajustes na perspectiva de manter taxas de lucros altíssimas na ciranda financeira”, Gilmar Mauro questionou:

“É possível ainda pensar em aliança com setores da burguesia social? ”

“Se não tem mais nenhum setor interessado neste projeto, seria a classe trabalhadora que o assumiria? ”

“Qual tipo de programa político e de alianças precisamos? ”

Crítico à perspectiva de que todos devem ganhar, “os empresários ganham, os trabalhadores ganham”, afirmou: “no nosso modo de ver, a conta não fecha desse jeito. No capitalismo alguém sempre tem que perder”.

“Eles estão impondo a perda deles para cima de nós. Daí o ajuste, visando a maior fatia da mais valia social produzida pela classe trabalhadora e juros, dividendos de grandes investimentos. É por isso que é preciso discutir que tipo de projeto nós queremos”, complementou.

O preço da despolitização

Mauro também criticou a ideia disseminada, “principalmente no Governo Dilma”, do crescimento da classe média brasileira. De forma equivocada, sustentou, essa ideia despolitizou a sociedade brasileira. “Sob uma perspectiva da sociologia norte-americana, disseminaram um conceito que não leva em consideração a propriedade, mas o indivíduo e a possibilidade individual de ascensão social”.

Na realidade, explicou, “o que temos no Brasil e no mundo é um aumento da classe trabalhadora com diferenciações sociais imensas. Uma parte com alguns direitos e ganhos evidentemente elevados se comparada com a outra parte, uma grande maioria com dificuldade de se estabilizar e precarizada. Mas, todas as partes dentro do grande espectro da classe trabalhadora”.

Em sua avaliação, essa despolitização está custando um alto preço ao país: “o grande conjunto da classe trabalhadora assiste à luta política no Brasil como se estivesse vendo uma partida de tênis”. Ele também chamou a atenção para a necessidade da renovação das formas organizativas dos movimentos sociais, populares, sindicais e dos partidos políticos.

“O que nós produzimos é o que de melhor a gente tem. Mas, o que a gente tem ainda é insuficiente para enfrentar a luta de classes neste tempo histórico”, considerou, ao chamar a atenção para necessidade, urgente, “do aprofundamento político e de um balanço crítico”, capazes de criar as condições necessárias de enfrentamento ao longo do próximo período.

“Serão tempos muito difíceis”, avaliou.

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