segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

Um Estado de Direito "fast food"

Por Tarso Genro

“No Rincão Velho um dia anunciei ao meu querido amigo Oscar Pardo: prepara-te. Vamos nos casar. Correu ao seu quarto e voltou com uma escopeta na mão. Entendeu que íamos caçar”. (Adolfo Bioy Casares, “Memórias”, anunciando a um amigo o seu casamento com a escritora Silvina Ocampo).

Neste emaranhado de informações vazadas, notícias verdadeiras e manipuladas, avaliações do comportamento dos agentes públicos envolvidos na operação “lava-jato”, creio que faz falta um debate de princípios. Um debate – tanto do ponto de vista jurídico como político – para situar a guerra política que estamos vivendo, no interior do Estado de Direito, na sua fase histórica de Estado Democrático e Social. Estado, este, que adquiriu sua elaboração doutrinária mais complexa, após as derrotas das diversas formas de fascismo depois da Segunda Grande Guerra.

Como diz Lenio Streck, no seu brilhante “Jurisdição Constitucional e Hermenêutica”, “nem tudo está perdido, a Constituição ainda constitui”, e prossegue: “o Direito, enquanto legado da modernidade – até porque temos uma Constituição democrática – deve ser visto hoje como um campo necessário de luta para a implantação das promessas modernas”. Este pequeno ensaio quer saudar esta visão e, ao mesmo tempo, contribuir para que as lutas que se travam hoje no Brasil, contra a corrupção, não redundem como na Itália, na transferência do poder político de Estado para esquemas de corrupção que tenham na sua vanguarda um esquema ainda mais complexo e poderoso, como aquele que levou Berlusconi ao poder, por quase uma década: a irmandade siamesa da grande mídia, as agências de risco e o capital financeiro especulativo.

Os processos político-judiciais em andamento no Brasil desenham um duplo cenário e ensejam várias possibilidades de desenlace: são – ao mesmo tempo – um momento revelador positivo da nossa trajetória republicana, porque é um fato real a existência de organizações criminosas dilapidando o Estado; e também são um momento de constrangimento do Estado, para que ele não prossiga na promoção da efetividade da agenda constitucional dos direitos sociais, que os credores da dívida pública veem como uma ameaça ao seu direito de recebê-la.

A “midiatização” do Processo Penal, que vincula politicamente o Judiciário como instituição, a grande mídia e a direita política (ramificada em todos os partidos com forte representatividade eleitoral), compõem o cenário onde as coisas, até agora, estão se resolvendo, pois o Estado Democrático e Social de Direito – tal qual foi aqui foi constituído – é um bloqueio à agenda do capitalismo financeiro global. A via mais eficaz para derrotá-lo, desconstituindo-o em termos programáticos e impugnando as suas promessas, é através da luta contra corrupção: uma luta meritória para um objetivo espúrio. Salvá-lo, iria requerer o seu aprofundamento no respeito aos direitos fundamentais e na resposta concreta aos direitos sociais, via que não foi escolhida, até agora, pelos governos sob ataque.

Para que essa análise não seja distorcida, quero sustentar que tanto as investigações do Ministério Público, bem como a direção processual dos casos – ainda em exame, pelo Poder Judiciário – não podem ser vistos como uma “conspiração da direita”, contra os governos de esquerda (na sua acepção tradicional), instalados no país depois de 2002. Nem eram tanto “governos de esquerda”, nem os processos arremeteram somente contra pessoas mais à esquerda, no espectro político tradicional desta. Mais corretamente, pode-se dizer que são ações que surgiram, combinando um avanço republicano das instituições – a partir da luta contra a corrupção centenária (fundamentadas na defesa da legalidade) – com a conveniência de ajudar a derrotar o desenvolvimento da democracia social no Brasil, promovido pela Constituição de 88.

A mesma Constituição que edificou os direitos sociais programáticos e limitou-os, por proibições constitucionais, que só permitem a implementação dos direitos fundamentais e sociais pelas tortuosas formas tradicionais do velho Estado de Direito, verticalizado, não participativo e propício para ser controlado pelas velhas oligarquias e corporações. Lula está sendo cercado – não Fernando Henrique nem Aécio – porque teve a capacidade de movimentar esta máquina, dentro da ordem, para diminuir a distância entre ricos e pobres no país, o que permitiu a evolução democracia social, ainda que sob controle das grandes fortunas, não da cidadania comum.

Duas grandes falácias, porém, estão na base desse movimento político e jurídico. Elas marcarão – independentemente dos seus resultados – a nossa história para sempre. A primeira falácia, é que os processos judiciais em curso obedecem ao princípio da “neutralidade formal do Estado”, portanto estão sendo encaminhados dentro do “Direito vigente”. Ora, nenhum Estado, democrático ou não, é “neutro”, pois verdadeiro conteúdo da vida constitucional de um Estado não está naquilo que a norma constitucional ordena ou outorga, como direito ou pretensão de direito, mas está naquilo que a sua Constituição proíbe, onde o Estado declara, portanto, a sua “não neutralidade”.

O sentido concreto desta afirmação é que, embora possa se desejar que toda a norma constitucional seja norma jurídica, nem toda o é: algumas são programáticas, outras são princípios formais, outras são inaplicáveis. E são assim – programáticas ou inaplicáveis – porque a sua força normativa e influência direta, na vida do cidadão concreto, é barrada, formal e materialmente, pelas proibições, contidas na mesma Constituição. Se o Estado fosse “neutro”, o direito de propriedade seria tão viabilizado como a proteção dos direitos fundamentais e, mais ainda, o aparato estatal permaneceria inerte – o que seria ruim – perante os supostos ou reais crimes atuais, como o fez perante pessoas dotadas dos mesmos direitos, prerrogativas e deveres, em outros momentos.

O que determina, portanto, o ativismo judicial em curso – com seus problemas e méritos – é o ambiente democrático, a política (que não é neutra), que penetra em todos os poros do MP e do Poder Judiciário. E estes, no momento que passam a identificar uma “classe política” a ser vigiada e punida (não propriamente os criminosos que estão na política), tornam-se – eles mesmos – uma classe política especial. “Classe” dotada de poderes políticos excepcionais, que formula o axioma que estão “acima da política”, tornando-se, desta forma, corregedores da democracia, a partir de um suposto “clamor público”, que lhes estimula a novas interpretações da Constituição e das leis penais: abalam o garantismo e, às vezes, até invertem o ônus da prova nos processos criminais.

O Estado Social e Democrático de Direito é a formulação mais avançada do Estado de Direito, que pretende equilibrar a “democracia política” e os direitos “sociais e fundamentais”, com a trama normativa e prescritiva do Direito Constitucional, que é, ao mesmo tempo, programa e norma, prescrição e proibição, já uma nova utopia moderna, portanto, sob o assédio universal da destruição das suas funções públicas.

Os processos em curso promovem, como estão sendo geridos até agora, um “empate estratégico”, entre o avanço de uma ordem mais republicana e um retrocesso autoritário, desta mesma ordem, em função dos instrumentos que estão sendo usados na sua implementação. Este “empate” ainda não está resolvido, pois ele se decide, não nos Tribunais, mas no terreno político, e o próprio MP e os Juízes, ainda não estão cooptados, majoritariamente, para o novo sentido que está sendo dado às suas funções de revisores da ordem jurídica democrática, sem serem mandatados pelo detentor da soberania: o povo constituinte.

A segunda falácia é a comparação da “lava-jato” com a “Mãos-Limpas” (ou a “Tangentópoli”) italiana. As grandes operações policiais contra a elite que tinha dirigido o Estado italiano no pós-guerra (até os anos 90) foram promovidas contra todos os partidos e líderes, que passaram pelos sucessivos governos italianos no pós-guerra, ao contrário do que ocorre em nosso país, cuja seletividade só não é mais forte em função da socialização da informação feita pelas redes.

Os processos dos anos 90 sucederam ações duríssimas contra a Máfia, então dirigidas pelos juízes Borselino e Falcone, na década anterior (e pelo Chefe dos fiscais, Rocco Chinnici), todos posteriormente assassinados pelos grupos criminosos que combateram. Eis a diferença substancial: a pauta do combate à criminalização do Estado, promovida por estes heróis assassinados, ficou como exemplo para as novas gerações de juízes e fiscais, que não foram orientados pela grande mídia, nem homenageados por ela, para começar o seu trabalho de apuração “direcionado”, dos crimes contra o Estado, mas foram motivados pelo exemplo dos seus antecessores.

Segundo as investigações de Borselino e Falcone, a Máfia – com as suas devidas variações regionais – mantinha uma estreita relação com as mais importantes lideranças da democracia cristã da Itália, que se projetaram para os demais partidos de Governo, até a chegada de Berlousconi ao poder, glorioso “renovador” da política italiana. Neoliberal, autoritário e corrupto, que veio de fora da “classe política”, para ocupar funções de Governo.

Pier Luigi Zanchetta, num estudo das perspectivas judiciais e políticas, abertas com aqueles processos na Itália, mostra (1995) que a “Tangetopoli” começa quando amadurecem as condições políticas e econômicas que abalam o pacto de “não beligerância” entre a Magistratura e o Poder Político. Pacto este, já também debilitado pela presença ativa no Sistema de Justiça italiano de Juízes e Fiscais simpatizantes do Partido Comunista Italiano ou, pelo menos, independentes das oligarquias da democracia cristã. São novos quadros, originários de correntes ideológicas e políticas, que não tiveram responsabilidades significativas no governo nacional, depois da estabilização posterior ao fascismo.

A utilização, que estes fizeram da imprensa, “manipulando-a” – como diz o Juiz Moro elogiosamente no seu “Considerações sobre a Operação Mani Pulite”, também nada tem a ver com o que ocorre no nosso país, pois aqui há uma mão inversa, não observada inocentemente por Moro: a imprensa é que estimula ou “limita”, a ação da Polícia e do Sistema de Justiça, usando prebendas publicitárias que outorga a quem atende a suas “denúncias”, transformando estas autoridades em uma “longa manus”, não só da sua ação destrutiva da esfera da política (na qual a mídia oligopolizada institui a pauta que lhe interessa), mas também edifica ou destrói lideranças públicas, segundo a sua visão de Estado e projeto político.

A mudança dos critérios interpretativos das normas jurídicas do Processo Penal e do Direito Penal, a relativização do garantismo e a anulação concreta da presunção da inocência, não só pelos vazamentos seletivos, mas também pela voz pública dos Juízes, Procuradores e Delegados de Polícia -antecipando convicções sobre os processos judiciais e investigações em curso- configuram o erguimento de uma nova ordem, dentro da mesma ordem.

É uma mudança, porém, que atinge os “fundamentos” de qualquer Constituição democrática, a saber: o princípio da igualdade formal e o princípio da inviolabilidade dos direitos. Os atuais réus, dentro da mesma ordem jurídica, não estão tendo o mesmo direito à ampla defesa, que tiveram os outros réus, que lhes precederam, processados sobre os mesmos temas, porque os processos atuais viraram espetáculos políticos da mídia partidarizada e instrumentos de liquidação de uma facção política, quando se sabe que a delinquência contra o Estado, está dentro de todas as facções. Nem estão tendo, estes réus, o direito de aguardar, para cumprir suas penas, que as suas sentenças transitem em julgado.

O que estamos vendo é a construção de um Estado de direito “fast food”, para adaptar a ordem política às necessidades do capital financeiro das agências de risco, que só não aceita a corrupção dos outros. Na verdade, o objetivo estratégico de todo este movimento, que traz no seu início a marca generosa e republicana do combate à corrupção – independentemente da consciência dos seus protagonistas – passou a ser chegar a um governo capaz de decapitar o Estado Democrático e Social de Direito, dada a sua incapacidade (verdadeira) de, ao mesmo tempo, pagar a dívida financeira legítima e ilegítima, e também pagar a dívida social, reconhecida na Constituição social e democrática que escolhemos em 88. Para cumprir com estas promessas, os contratos da dívida deveriam, em algum dia, serem revistos, nas suas partes ilegítimas e ilegais.

Norberto Bobbio diz que a “ética da convicção” não coincide com a “ética da responsabilidade”, pois aquela é uma ética dos princípios e esta é uma ética “dos resultados”. Esta distinção, que atravessa a história da filosofia moral, desafia tanto os dirigentes políticos como os “operadores do direito”, em cada momento das suas vidas. A primeira pode levar a um fanatismo repugnante, que descarta o homem concreto e celebra o homem abstrato, aplicando mecanicamente os princípios, independentemente das particularidades e até mesmo singularidades de cada situação vivida.

A segunda pode levar ao pragmatismo extremo, na busca de um resultado que viola princípios e desliga-se hoje, portanto, do conjunto de valores construídos na modernidade democrática e no humanismo revolucionário das Luzes. Tudo indica que predomina, no atual jacobinismo dos Juízes e do Ministério Público, esta segunda hipótese. Até onde chegarão, depende mais da ação política na sociedade do que dos resultados, já antevistos, da maioria dos processos penais em curso. É bom ser pessimista, mas também não perder a esperança.

* Tarso Genro foi Governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro da Educação e Ministro das Relações Institucionais do Brasil.

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