sexta-feira, 18 de setembro de 2015

O negócio global da droga

Por Helder Lima, na Revista do Brasil:

O debate sobre enfrentamento aos problemas das drogas ilícitas raramente vai além da necessidade da guerra ao consumo e aos traficantes e da internação de usuários. Qualquer coisa fora disso é difícil debater, seja nos veículos de comunicação, nos meios ditos especializados, nos parlamentos ou nos sistemas de segurança pública. A postura acaba até por reforçar o preconceito de quem ainda acha que o próprio usuário deve ser punido. Não por acaso, o preconceito move as ações policiais do dia a dia. Os usuários muitas vezes acabam presos e, por serem pobres, negros e periféricos, enquadrados como traficantes.

A Lei federal 11.343, de 2006, sancionada com o espírito de atenuar os flagrantes com drogas, prevendo medidas de reinserção social para usuários, acabou produzindo efeito inverso. Desde então, a população carcerária no país presa por tráfico cresceu mais de 300%, de 31 mil presos para 138 mil em 2013. À primeira vista, pode parecer que a repressão às drogas foi eficiente. Mas o fato é que jovens usuários estão sendo presos como traficantes – uma distorção para a qual só agora algumas autoridades parecem despertar, com o debate da descriminalização do porte de drogas para uso próprio levado ao Supremo Tribunal Federal (STF).

Nesse cenário, o grande traficante jamais aparece. E a polícia atua enxugando gelo, combatendo a base da pirâmide hierárquica do tráfico, enquanto o comércio de drogas concentra cada vez mais poder econômico, no Brasil e no mundo. “No Brasil, quem vai preso é o favelado da boca de fumo. As drogas produzem muito lucro, e o cara que ganha mais não está visível, é quem compra no atacado”, afirma o vice-presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), Cristiano Maronna. A entidade participou, em maio, do lançamento da Plataforma Brasileira de Política de Drogas (PBPD), com o objetivo de promover um debate mais realista do assunto e defender a descriminalização das drogas.

Falar em “economia das drogas” atualmente significa se reportar a uma indústria que terminou a primeira década do milênio com um faturamento anual de US$ 870 bilhões, segundo o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (Unodc). A concentração no comércio de drogas ilegais corresponde a 1,5% de todas as riquezas produzidas no globo, o Produto Interno Bruto (PIB) mundial, e movimenta 40% das demais frentes de negócios mantidas pelo crime organizado globalmente, como tráfico de armas, de pessoas e lavagem de dinheiro, entre outros, que giraram US$ 2,1 trilhões, ou 3,6% do PIB global, ainda segundo a Unodc, com base em dados do final da década passada.

A chave da conexão

A lavagem de dinheiro e a evasão de divisas – impossíveis de serem operadas sem a participação de engrenagens que movem o sistema financeiro globalizado – são a base da sustentação administrativa e financeira das organizações criminosas. “As atividades relacionadas ao narcotráfico têm raízes espalhadas por todo o mundo, os entorpecentes trafegam entre diversos países até efetivamente chegar ao consumidor final. O financiamento dessas atividades passa pelos crimes de lavagem e evasão, mas é um tanto quanto difícil mensurar qual cifra corresponde a essa modalidade”, afirma o financista Fábio França, professor e especialista em sistema financeiro nacional. “A lavagem de dinheiro é a conexão entre as ilegalidades”, reforça Cristiano Maronna.

A Unodc estima que cada US$ 1 investido da produção de psicoativos ilícitos – como maconha, cocaína, ecstasy, heroína – se transforma em US$ 7,3 com as vendas no atacado e em US$ 25 no varejo. Mas não é só nos números que os negócios com drogas são superlativos. Para chegar a esses resultados, em torno do mundo do narcotráfico giram técnicas de administração e estratégias de negócios de fazer inveja a qualquer setor regulamentado da economia.

A economista Taciana Santos de Souza adotou o tema “economia das drogas” para a sua tese de mestrado na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), concluída neste ano. Segundo ela, o narcotráfico é uma indústria com grande capacidade de adaptação e inovação. “Constantemente, são criados novos processos de produção, novas substâncias psicoativas, novas rotas, novas formas de comercialização, novos insumos. A velocidade de inovação e adaptação é, antes de tudo, condição de sobrevivência e de crescimento dos negócios”, afirma.

O escritor italiano Roberto Saviano vai mais longe: “Não pode existir a criação de um poder econômico criminoso sem uma conivência e uma aliança com a burguesia saudável do país. É este o elo que precisa ser descrito. A periferia napolitana bomba dinheiro do centro da Itália”, afirma Saviano, que compara o fenômeno italiano com as favelas brasileiras – vulneráveis ao mundo criminoso brasileiro “bombam dinheiro da economia legal brasileira”, afirma, referindo-se à lavagem de dinheiro com o comércio de drogas.

Esse depoimento de Saviano foi gravado em vídeo no início de julho. Convidado para o Festival Literário de Paraty (Flip), o escritor não veio por questões de segurança. Ele vive sob proteção da polícia desde que foi ameaçado de morte pela máfia italiana, por conta do livro e do filme Gomorra, que tratam da máfia de Nápoles. O filme foi lançado em 2008, com ampla repercussão mundial. Em setembro de 2014, foi lançado no Brasil outro título seu, Zero Zero Zero, em que descreve as operações e estruturas de poder dos cartéis do narcotráfico mundial, principalmente com a cocaína, que ele chama de “petróleo branco”.

Com base em diversas investigações policiais a que teve acesso para construir sua narrativa, Saviano afirma no livro que as ações do crime organizado representam hoje uma verdadeira ameaça à democracia. “A crise econômica, as finanças devoradas pelos derivativos e pelos capitais tóxicos, o enlouquecimento das bolsas: em quase toda a parte estão destruindo as democracias, destroem o trabalho e as esperanças, destroem créditos e vida. Mas o que a crise não destrói – ao contrário, fortalece – são as economias do crime”, constata.
Estrutura sistêmica

O crescimento da economia mundial desde os anos 1960 segue em paralelo ao crescimento do poder do narcotráfico e das outras práticas ilegais, que na verdade são subprodutos da globalização. Mas a crise mundial de 2008, que neste ano abala o Brasil com mais intensidade, teve sua origem nos paraísos fiscais. Desde então, ganhou força uma tendência à regulamentação, com exigência de compromisso com a transparência.

Essa tendência à adoção de marcos regulatórios, que se contrapõe ao discurso neoliberalista em defesa da liberdade dos mercados, é reflexo das forças governamentais, policiais e repressoras tentando seguir os fluxos do dinheiro ilegal. “A Fifa (Federação Internacional de Futebol) é um caso claro de corrupção em entidade privada, que permitiu que indivíduos estrangeiros na Suíça fossem presos por ordem da polícia norte-americana. O ponto em comum é a lavagem de dinheiro. Fifa não é droga, mas precisa ocultar a origem do dinheiro, e por isso usa a lavagem”, afirma Cristiano Maronna, do IBCCRIM, lembrando que organizações terroristas como a Al Qaeda e o Estado Islâmico também adotam o mecanismo da lavagem de dinheiro.

Em 2010, foi aprovado o Foreign Account­ Tax Compliance Acts (Fatca), que entrou em vigor em julho de 2014. São regras que permitem ao governo dos Estados Unidos tributar fora de seus limites geográficos e promovem regras bilaterais com países e instituições financeiras. “Os Estados Unidos têm poder de fiscalizar a lavagem de dinheiro a partir da identificação de operações suspeitas. Vão desvelando o novelo, em negócios e pessoas com movimentações incompatíveis. Mas ainda existe um grande obstáculo, que são os paraísos fiscais”, afirma Maronna. Um dos desdobramentos do Fatca se deu em 2013, quando cinco das principais economias da União Europeia – França, Alemanha, Espanha, Itália e Reino Unido – resolveram adotar programas contra a evasão fiscal com base no tratado dos norte-americanos.

Além da adoção de marcos regulatórios contra as práticas financeiras ilegais, a legalização das drogas tem despontado em diversos países como caminho efetivo para romper as cadeias de produção ilegais. “Eu apoio a legalização fortemente regulamentada pelo Estado”, afirma ­Taciana. “Essa é a minha perspectiva e que parte inicialmente da maconha, que é a substância psicoativa mais utilizada no mundo. No último relatório da ONU, em 2014, eles estimaram que, no ano de 2012, 177 milhões de pessoas no mundo fizeram uso de maconha, e por conta desse mercado consumidor vai ser o que mais vai movimentar dinheiro. Além disso, a maconha vai ter um padrão de uso que vai ter o menor risco, porque é uma substância psicoativa milenar, não há relatos de mortes por overdose, e principalmente porque a maconha é uma substância natural, e isso vai fazer diferença na cadeia produtiva das drogas.”

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Lavagem de dinheiro sangra R$ 500 bi por ano

A economia e a política do país são reféns da lavagem de dinheiro. Enquanto a atividade econômica perde R$ 500 bilhões por ano com essa prática, a política se contamina muitas vezes com recursos de empresas de fachada, usadas para esse fim. O senador Fernando Collor (PTB-AL), por exemplo, declarou à Justiça Eleitoral ter feito empréstimos de R$ 7,4 milhões na eleição do ano passado a uma empresa de sua propriedade, considerada de fachada pelos investigadores da Lava Jato. Os recursos perdidos anualmente representam 18,4 vezes o orçamento do Bolsa Família em 2015. E quase cinco vezes a meta do ajuste fiscal autoimposta pelo governo, de R$ 103 bilhões. “Imagine esse os valores destinados a políticas sociais? A distribuição de renda? A infraestrutura em locais de vulnerabilidade? São cifras capazes de mudar a história para melhor”, afirma o professor Fábio França, especialista em sistema financeiro nacional. Confira a entrevista.

O que é lavagem de dinheiro e o que é evasão de divisas?

A Lei 12.683/12, em seu artigo 1º, define lavagem de dinheiro como: “Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal”. Ou seja, toda movimentação financeira de dinheiro, bens, propriedades oriundas de práticas ilegais é considerada lavagem de dinheiro.Sobre evasão de divisas, a Lei 9.069/95 dispôs inicialmente sobre o tema em seu artigo 65º, porém, a partir de 2012 e da promulgação da Lei 12.685/12, o referido artigo passou a ter a seguinte redação: “O ingresso no país e a saída do país de moeda nacional e estrangeira devem ser realizados exclusivamente por meio de instituição autorizada a operar no mercado de câmbio, à qual cabe a perfeita identificação do cliente ou do beneficiário. § 2º O Banco Central do Brasil, segundo diretrizes do Conselho Monetário Nacional, regulamentará o disposto neste artigo, dispondo, inclusive, sobre a forma, os limites e as condições de ingresso no país e saída do país de moeda nacional e estrangeira”.Toda remessa de valores para fora do país, em valores superiores a R$ 10 mil, deve ser mediada por uma instituição financeira autorizada a essa finalidade, que deverá identificar o cliente que está fazendo a operação. E toda manutenção de recursos acima de US$ 100 mil que não for devidamente comunicada ao Banco Central será considerada evasão de divisas.

Qual o tamanho do prejuízo que essas práticas produzem na economia?

De acordo com o Global Financial Integrity (GFI), organização de pesquisa e consultoria sediada em Washington, o Brasil perdeu em média 1,5% do PIB ao ano entre 1960 e 2012, com a entrada e saída de dinheiro de maneira ilegal e criminosa. Nos últimos dez anos, com um valor estimado em U$ 217 bilhões, de acordo ainda com a mesma organização, as remessas ilegais de recursos superam em 113% as remessas legais. Cerca de R$ 500 bilhões ao ano é o prejuízo na economia brasileira decorrente da prática de crimes de lavagem de dinheiro.

E na economia mundial?

Em torno de 2% a 3% do PIB mundial.

As obras de arte apreendidas indicam que esse é um dos caminhos da lavagem de dinheiro?

Sim, pois obras de arte são atemporais, e o juízo de valor sobre elas demanda questões emocionais e não apenas mercadológicas, o que faz com que sua precificação seja passível de severas diferenças entre real e estimativa. Além disso, o fato de serem ainda patrimônios mundialmente negociáveis e de em grande parte das vezes os proprietários não gostarem de ser identificados facilita muito a prática desse comércio com a finalidade de lavar dinheiro.

Quais são os outros caminhos?

São muitos, desde a pequena sonegação do comerciante que não emite nota fiscal até a grande investida através de empresas de fachada, que podem ter várias formas de financiamento, que vão de sonegação fiscal a tráfico de entorpecentes, comercialização de produtos contrabandeados ou piratas.

Por que existe lavagem de dinheiro e evasão de divisas no Brasil e no mundo? Falta regulação internacional e nacional?

Regulação existe. No Brasil, temos o Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras), órgão extremamente investigativo e combativo. O que falta não é regulação, mas sim, e isso no mundo todo, um combate mais efetivo em todos os âmbitos da sociedade. Não faz sentido o pequeno cidadão se indignar com essas cifras apresentadas acima e se esquecer que pela manhã comprou produtos piratas. Não faz sentido o comerciante reclamar que se houvesse menos desvios de lavagem de dinheiro a economia estaria melhor, se ele se sujeita a comprar mercadorias sem nota fiscal e revender sem nota fiscal.

No meu entender, é uma questão muito ampla e, em alguns aspectos, faz parte da cultura ser conivente, mesmo que sem querer, com práticas de lavagem de dinheiro. Falta incentivo à denúncia por parte de qualquer um que presencie possíveis indícios.

Você diria que a fome e a pobreza estão relacionadas a essas práticas?

Certamente. Imagina esses valores destinados a políticas sociais? A distribuição de renda? A infraestrutura em locais de vulnerabilidade? São cifras capazes de mudar a história para melhor.

Quais prejuízos essas práticas promovem à democracia, uma vez que do ponto de vista político esse dinheiro também acaba financiando campanhas eleitorais, ou não?!

São imensos os prejuízos, pois imagine uma empresa de fachada, usada com fins de lavagem de dinheiro, financiando a campanha de um agente político para que esse, se eleito, legisle em benefício dessa ilegalidade, propondo que as regras e a regulação sejam menos severas.

Ou ainda, o financiamento de campanhas através de dinheiro oriundo do narcotráfico, de organizações criminosas, com o objetivo de que seus eleitos também trabalhem para o afrouxamento de leis. Por isso é de extrema importância a proibição do financiamento privado de campanhas, e nesse ponto, vivemos recentemente um imenso retrocesso.

É possível dar alguma dimensão, alguma medida, de como a lavagem de dinheiro e a evasão de divisas estão relacionadas ao narcotráfico?

As atividades relacionadas ao narcotráfico têm raízes espalhadas por todo o mundo, os entorpecentes trafegam entre diversos países até efetivamente chegarem ao consumidor final. O financiamento dessas atividades com certeza passa pelos crimes de lavagem de dinheiro e evasão de divisas, mas é um tanto quanto difícil mensurar cifras correspondentes a essa modalidade.

Quais são as empresas ou segmentos de atividade que adotam essas práticas?

Foi habitual até algum tempo atrás postos de gasolina serem muito, mas muito utilizados para essa prática. Outros segmentos também já foram alvos: ramo imobiliário, empresas transportadoras, revendedoras de veículos, casas de factoring, comerciantes de joias e objetos de arte, instituições religiosas – estas com certa facilidade e frequência, uma vez que são movidas a doações, e doações são dificílimas de serem mensuradas.

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