terça-feira, 25 de agosto de 2015

Outra vez a China

Por Wladimir Pomar, na revista Teoria e Debate:

Como acontece de tempos em tempos, a China voltou negativamente ao noticiário. Internacionalmente, desta vez, porque as bolsas de Xangai e Shenzhen tiveram uma bolha especulativa, porque o yuan foi desvalorizado e porque as taxas de crescimento deverão se manter baixas em “apenas 7% ao ano”.

Em termos nacionais, afora isso, porque as relações do Brasil e outros países em desenvolvimento com a China conformariam uma ligação quase colonial, como mercados cativos supridores de matérias-primas para aquele país. Na prática, além de faltar um passo para apresentarem a China como o maior inimigo desses países e da humanidade, algumas dessas interpretações aproveitam a ocasião para criticar o modelo de desenvolvimento industrial capitalista chinês, que seria predador e o principal fator das mudanças climáticas mundiais.

Em relação à China nunca é demais lembrar que ela jamais chegou a ser uma economia dominada pelo mercado, embora este tenha aparecido cedo em sua história. A Rota Terrestre da Seda para o ocidente passou a ser trilhada por caravanas de mercadores chineses da dinastia Han e de outras nacionalidades, especialmente árabes e turcos, desde o século 2 antes de nossa era. Nos séculos 14 e 15, frotas oceânicas chinesas navegavam pela Rota Marítima da Seda, negociando com povos do sudeste da Ásia, Índia, Golfo Pérsico e África Oriental. A essa altura, os chineses já construíam embarcações com cascos estanques, lemes e velas triangulares, cujas tripulações se orientavam por meio de bússolas.

Ou seja, antes dos europeus, os chineses realizaram um mercantilismo que, embora limitado ao sudeste do Oceano Pacífico e ao Oceano Índico, lhes permitiu acumular grandes riquezas através da venda de seus artesanatos e manufaturas de seda, laca, cerâmicas e porcelanas. Tal riqueza poderia ter se transformado em “capital” se a China houvesse revolucionado sua agricultura, expropriado seus camponeses e os tornado trabalhadores livres para vender sua força de trabalho para os comerciantes manufatureiros. No entanto, o sistema feudal centralizado, com mais de 1.500 anos de existência, foi mais forte e se impôs aos mercadores, impedindo que a China ingressasse no sistema capitalista antes dos europeus.

A Rota da Seda marítima foi desativada, a esquadra chinesa destruída, a riqueza entesourada. E a dinastia Ming foi incapaz de resistir aos manchus, que invadiram a China, instauraram a dinastia Qing e consolidaram a regressão feudal. Tal regressão e o atraso técnico da China a tornaram incapaz de enfrentar a segunda onda colonial europeia, realizada pelas novas potências industriais, a partir do século 19. Entre 1840 e 1949, a China viveu sob os domínios manchu e dessas potências capitalistas, às quais fez concessões territoriais, alfandegárias e extraterritoriais para que elas extraíssem as matérias-primas minerais e agrícolas de que suas indústrias necessitavam.

Para livrar-se desses domínios, os chineses realizaram, entre 1864 e 1949, inúmeras revoltas, tendo por base fundamental o campesinato. Dentre elas destacaram-se as duas primeiras guerras civis revolucionárias, entre 1924 e 1937, a guerra de resistência contra a invasão japonesa, entre 1937 e 1945, e a terceira guerra civil revolucionária, entre 1947 e 1949.

Entre 1950 e 1957, os chineses implementaram a reforma agrária e superaram os três grandes males (fome, desemprego e milhões de sem-teto). Após isso, fizeram várias tentativas para industrializar o país, desenvolver suas forças produtivas e construir uma civilização material e culturalmente elevada, sem passar pelos males do mercado e do capitalismo.

Promoveram o Movimento das Cem Flores, para corrigir os desequilíbrios entre a indústria pesada e a agricultura e a indústria leve. Jogaram-se no Grande Salto Adiante para desenvolver a indústria do aço e as áreas irrigadas. Planejaram as Quatro Modernizações, que pareceram a muitos uma imensa concessão ao capitalismo e ao mercado. E mergulharam, em oposição àquelas modernizações, na Revolução Cultural, entre 1966 e 1976.

Essa foi a maior tentativa massiva até então conhecida pela humanidade para, através da intensa mobilização popular, ideológica e política, desenvolver as forças produtivas, estabelecer relações de produção e de vida igualitárias e promover a democracia direta. Seus resultados foram um baixo desenvolvimento das forças produtivas e da produtividade, o aumento da escassez, em parte produzido também pelo rápido aumento da população, uma regressão cultural causada pelo fechamento das universidades e danos à democracia popular.

O igualitarismo obtido teve como base 400 milhões de pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza e, como teto, 700 milhões de pobres. A experiência de dez anos de Revolução Cultural demonstrou que não é possível socializar as relações de produção sem ter, por sustentação, forças produtivas (meios de produção e força de trabalho) técnica e cientificamente desenvolvidas. Os chineses tiveram de cair na realidade, já prevista por Marx.

O alto desenvolvimento técnico e científico das forças produtivas é uma tarefa histórica do capitalismo e dos instrumentos que herdou das formações históricas anteriores e que elevou a um novo patamar. Isto é, a propriedade privada, as relações assalariadas, a indústria e o mercado. Por outro lado, através da própria experiência, o capitalismo sabia que esse modo de produção gera, constantemente, experiências de socialização, tanto na produção quanto na cultura e na política. E que suas crises o levam a apelar ao Estado, dando-lhe autonomia para salvar o sistema do desastre de sua anarquia produtiva.

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