quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

O dia em que a vaca tossiu

Por Miguel do Rosário, no blog O Cafezinho:

Ao trabalho, amigos e amigas.

Estou levando à sério minha ideia de iniciar um processo de afastamento definitivo da nossa mídia como fonte de informação.

Vamos discutir assuntos a partir de fontes primárias.

Eliminando os “atravessadores”, reduziremos de maneira extraordinária o custo da nossa informação.

Evitaremos stress desnecessário lendo as baboseiras ultrarreacionárias da nossa imprensa bananeira.

Será uma saudável mudança de hábitos, e forçará as instituições públicas a melhorarem os seus serviços de informação.

Entretanto, evitemos uma confusão aqui.

A instituição de uma nova cultura de informação não pode pressupor, de maneira alguma, uma leitura acrítica de nenhuma fonte.

Me parece evidente que, se eu pretendo saber mais sobre, por exemplo, a presidência da república, seria ridículo me limitar ao blog do Planalto.

É preciso, sempre, ouvir o outro lado.

Mais importante, o fato de ler o blog do Planalto não nos pode fazer acreditar piamente em tudo que vem publicado nele.

Isso seria uma ingenuidade que não podemos nos permitir.

Para isso, existe oposição. Por isso o Congresso Nacional abriga todas as forças, do governo e da oposição.

Nas páginas do Congresso, temos acesso às críticas ao Executivo e à presidenta.

Também é importante ouvir diretamente a oposição, acessando o site de suas legendas.

Esta tem sido a razão, há tempos, que nos leva a ler os colunistas da grande imprensa: para saber o que pensa a oposição.

É fundamental ouvir o que pensam os setores afetados por cada decisão do governo. Se uma decisão afeta os trabalhadores, é preciso ouvir o que as centrais têm a dizer.

E também os empresários.

Mas façamos isso sem os filtros da mídia. Entremos nas páginas das centrais sindicais, e das organizações empresariais. Ouçamos a opinião diretamente das fontes.

Não para concordar com elas ou eles, mas para construir uma opinião rica, elaborada a partir de um debate inteligente e democrático sobre qualquer tema.

Precisamos reforçar nosso pensamento crítico, embora sem confundir pensamento crítico com o criticismo urubu da mídia.

Fazer uma crítica construtiva é a melhor maneira de ajudar o país, e, em alguns casos, o próprio governo.

Por exemplo, no dia 29 de dezembro, o governo deu um susto nas centrais sindicais ao apresentar, de maneira autocrática, sem ter realizado nenhum debate prévio com a sociedade, uma proposta para reduzir diversos benefícios concedidos aos trabalhadores.

A proposta está na internet e reproduzo abaixo. Vamos debatê-la.

Governo corrige distorções na concessão de benefícios trabalhistas e previdenciários from Palácio do Planalto

A oposição ao governo, à direita e à esquerda, criticaram duramente as propostas, consideradas uma espécie de traição à jato da presidenta em relação a seu posicionamento durante a campanha, de que não tomaria decisões contra os trabalhadores, “nem que a vaca tussa”.

Em primeiro lugar, critiquemos o autoritarismo burro do governo, tratando a sociedade como uma criança mimada e tola, sem capacidade crítica para discutir os assuntos que afetarão a ela, à sociedade, e não ao governo.

Estamos falando aqui de mudanças em benefícios trabalhistas que irão afetar a vida de milhões de brasileiros, durante as gerações vindouras.

E o governo nos brinda com uma apresentação vergonhosamente tosca!

É evidente que uma medida dessa magnitude precisaria vir acompanhada de estudos infinitamente mais profundos do que os dois ou três gráficos presentes na apresentação feita por Mercadante.

A apresentação menciona um estudo feito pelo Ministério da Previdência Social.

Por que esse estudo não foi divulgado?

O problema da comunicação, mais uma vez, causa estrago.

Um estrago de proporções terríveis para a vida de milhões de pessoas.

Nem preciso ler a mídia para saber que ela recebeu a proposta com entusiasmo, e não proporcionou nenhuma crítica consistente nem a sua forma nem a seu conteúdo.

A mídia apenas é “crítica ao poder político” quando este beneficia os trabalhadores. Aí ela se transforma em leão furioso.

Quando o poder político prejudica o trabalhador e beneficia o capital, ela vira um gatinho ronronante.

Quando é para beneficiar os ricos, a mídia familiar senta-se, confortavelmente, no sofá de um chapa-branquismo histórico.

É claro que o governo precisa tomar medidas para conter a explosão dos gastos previdenciários.

Medidas racionais, que visem fortalecer as contas do Estado, são bem vindas. Ainda mais num país que precisa, desesperadamente, fazer caixa para bancar investimentos trilionários em infra-estrutura.

Mas vamos devagar que o santo é de barro!

Se é para cortar benefícios, sejamos ao menos democráticos! Cortemos pouco dos pobres e muito dos ricos.

As alterações propostas pelo governo são as seguintes:



Discutamos uma a uma.

1) Abono salarial.





A primeira medida me parece a mais café com leite. A alteração nos parâmetros do abono salarial não traz consequências graves ao trabalhador. O abono salarial é um prêmio pago pelo governo a quem tenha trabalhado por mais de 30 dias; o governo propõe que se estenda essa carência para seis meses.

Para falar a verdade, gostaria de entender melhor a razão da existência do abono. O governo poderia até mesmo cortá-lo de vez, se fosse para evitar algumas medidas drásticas sobre o seguro-desemprego e a pensão por morte, que iremos discutir em seguida.

2) Seguro desemprego.

É a medida mais cruel, a meu ver. Espero que não seja aprovada no Congresso. O governo propôs elevar o período de carência de 06 meses para 18 meses na 1ª solicitação, 12 meses na 2ª solicitação e manter em 06 meses na 3ª solicitação.

A razão de ser do seguro desemprego é permitir que a renda do trabalhador não sofra um corte brusco demais após ser demitido, causando insegurança alimentar em sua família e impedindo, às vezes, até mesmo que o trabalhador consiga um outro emprego. Para conseguir um trabalho novo, o trabalhador precisa de uma roupa nova, imprimir um currículo, pagar transportes.

A proposta do governo, além disso, falha ao não trazer números que nos permitam analisar o cenário. Quantos trabalhadores usam o benefício por ano? Se existem fraudes, quais são elas? Há uma estimativa do valor das fraudes sobre o total das despesas com seguro desemprego?

Não havia uma fórmula socialmente menos traumática para combater as fraudes?

O primeiro emprego do cidadão é justamente aquele mais instável, porque ele talvez ainda não tenha completado a sua formação educacional ou profissional.

O setor mais afetado, naturalmente, é a juventude. O jovem é sempre quem mais sofre com desemprego e falta de dinheiro, por razões inclusive naturais.

O seguro desemprego é um dos principais colchões sociais em países avançados, e integra-se a um forte sistema público de distribuição de vagas.

Também por lá há problemas de fraude, ou mesmo de má fé por parte de alguns trabalhadores, mas isso se resolve com mais transparência e mais controle, e não com corte de direitos.

3) Seguro-desemprego do pescador artesanal.

Achei estranho incluir um benefício setorial numa proposta que discute mudanças de caráter universal.

A medida me cheira a uma tremenda muquiranagem do governo e uma terrível injustiça com um setor obviamente frágil economica e politicamente.

Cortar benefícios do pescador artesanal?

Também faltam muitas informações sobre isso. Entendo que talvez haja proliferação de fraudes. Tipo assim: numa determinada região pesqueira, todo mundo, pescador ou não, está se registrando para receber o seguro pescador.

Acho normal o governo combater a fraude, mas em se tratando de um setor tão frágil, e ao mesmo tempo tão importante para a segurança alimentar de algumas regiões, seria interessante aumentar a vigilância, combater o desperdício, mas aumentar o apoio do governo àqueles que, efetivamente, vivem da pesca artesanal.

O governo podia aproveitar ainda e introduzir seguro-desemprego especial para outros setores vulneráveis, que também dependem da sazonalidade da atividade econômica onde trabalham, como cortadores de cana e colhedores de café.

4) Pensão por morte.

Outra alteração tremendamente mal explicada, e que, do jeito que foi apresentada, ficou parecendo uma absurda violência do Estado contra milhões de futuras viúvas. É o item onde o governo, num gesto de generosidade, ofereceu alguns gráficos e estatísticas para explicar a medida.

Quer dizer, quando olhamos os gráficos, o que parecia generosidade ganha ares de má fé.



Os percentuais comparativos apresentados não querem dizer nada. O que significa dizer que “78% dos países tem alguma regra de carência?” O que precisamos saber é o prazo exato de carência, em que condições, de preferência em países de economia avançada, com os quais gostaríamos de nos comparar. Comparar o Brasil a países de economia destruída da África é má fé.

Algumas mudanças parecem justificáveis a primeira vista. Por exemplo, a instituição de uma carência de 24 meses de contribuição. Hoje não há carência. A lógica econômica é óbvia. Só recebe quem pagou um certo período.

Menos mal que há exceções honrosas: em caso de morte por acidente de trabalho, ou doença profissional ou do trabalho, não haverá carência.

Peraí? Doença profissional ou do trabalho? E se for um câncer, que não tiver nada a ver com o trabalho? E se o sujeito ficou tão esgotado no trabalho que, ao ir para a casa, tomba na rua, desmaia e morre?

Está tudo mal explicado.

Aí o governo nos mostra um gráfico



Essa é a parte que considerei um tanto mal intencionada. O governo quer nos dizer que o Brasil é o país com o maior gasto em pensão por morte do mundo?

3,2% do PIB? É isso mesmo?

Tem alguma coisa errada aí. Me parece óbvio que há uma comparação indevida. Todo mundo sabe que os gastos previdenciários em toda a Europa são muito maiores que os do resto do mundo. Em países como Suécia e Noruega, a aposentadoria é universalizada, de maneira que viúvas não dependem da pensão por morte dos maridos.

A intenção do governo é óbvia, e até louvável: mostrar que os gastos com pensão por morte extrapolaram o limite razoável, de maneira que urge racionalizá-lo de alguma maneira.

Entretanto, fazê-lo sem impor uma agenda de combate à desigualdade, me parece injusto. Cortar igualmente pela metade a pensão dos que ganham 10 salários e os que ganham 2 ou 3 salários, é socialmente errado.

Aliás, falta informação aqui: há algum tipo de teto para pensão por morte? E por que cortar 50% e não, por exemplo, 40%?

O governo diz que o benefício mínimo continua sendo um salário mínimo, e que 57,4% das pensões correspondem a um salário.

Muita “generosidade” por parte do governo manter o mínimo como o mínimo.

Só que o percentual de 57% revela então que 43% das pensões hoje correspondem a valores maiores que o mínimo, e que serão violentadas (não as atuais, invioláveis, mas as registradas no futuro). Seria interessante termos uma estratificação melhor disso. E bem que podíamos discutir um escalonamento dos cortes, não? Pensões maiores, cortes maiores. Menores, cortes menores.







Quanto à imposição de limites em proporção à expectativa de vida do cônjuge beneficiado, acho uma medida justa. De fato, é um tanto absurdo que uma viúva de 20 anos receba pensão vitalícia do Estado.



Mas eu fico com pena da viúva com 43 anos, 11 meses e 29 dias, pedindo pelo amor de deus para o marido aguentar algumas horas antes de morrer, para que ela receba uma pensão vitalícia, e não por mais apenas 15 anos.

Esse tipo de arbítrio, teremos que resolver no futuro. Além do mais, há viúvas de 43 anos que trabalham, ou tem excelente saúde, enquanto há outras com pouca expectativa de vida.

Também aí seria o caso de discutir cláusulas para combater a desigualdade e promover mais segurança financeira para famílias mais vulneráveis.

Uma senhora de 42 anos, ganhando uma pensão por morte, terá renda assegurada por 15 anos. Ou seja, o Estado interromperá o benefício quando ela completar 57 anos. Tem alguma coisa errada aí. Interromper o benefício quando a pessoa mais precisa?

É preciso discutir, junto aos especialistas em programas de assistência social, que medidas poderão ser tomadas para assegurar a segurança alimentar e financeira dessas viúvas e suas famílias, após o término do benefício.



5) Auxílio-Doença.

Ao que parece, o governo visou reduzir uma série de fraudes no sistema de auxílio doença, mas é mais um daqueles casos em que o inocente paga pelo pecador.

A alteração também está mal explicada e mal discutida. O que o governo pretende fazer, impondo uma dificuldade a mais na concessão do auxílio doença?

***

Conclusão

Esses temas são importantes demais para que o governo elaborasse qualquer proposta sem fazer uma discussão prévia com a sociedade.

Se o governo tem disposição de adotar medidas impopulares, que cortam benefícios dados aos mais pobres, poderia usar a oportunidade para discutir, ao mesmo tempo, outras que cortassem também dos mais ricos.

Seria mais justo e mais democrático.

Seria muito menos doloroso para os mais pobres se eles entendessem que os ricos também estariam dando a sua contribuição para o aprimoramento das contas nacionais. E que o objetivo final do governo seria assegurar uma longeva solidez financeira para nossa economia.

Ou seja, cortaremos a pensão das viúvas, mas protegendo aquelas mais pobres e impondo algum tipo de imposto sobre a herança.

O primeiro governo Dilma foi talvez a gestão, em toda a nossa história, que mais concedeu benefícios sociais aos brasileiros mais pobres.

Foi apenas por isso que ela ganhou as eleições.

É triste que, por falta de debate e comunicação, o governo agora crie a imagem de que corta direitos futuros dos trabalhadores, sem discutir os cortes com a sociedade e sem exigir nenhuma contrapartida dos mais ricos.

Sintomático ainda que os núcleos mais fortes do governo, com Mercadante à frente, tenham tanta coragem para cortar a pensão das viúvas, e tanta covardia para fazer qualquer enfrentamento ao donos da mídia e do capital.

Neste início de segundo governo, esses núcleos parecem ter abandonado qualquer preocupação com a construção de símbolos de avanço democrático e de luta por justiça social.

É um caminho perigoso, porque enfraquece o governo junto às suas bases mais importantes, isolando-o politicamente.

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