terça-feira, 3 de junho de 2014

Dilma devia dar asilo para Snowden

Por Altamiro Borges

Em entrevista à jornalista Sônia Bridi, no programa Fantástico deste domingo (1), Edward Snowden, ex-analista da Agência Nacional de Segurança (NSA) que revelou em 2013 o esquema criminoso de espionagem dos EUA, voltou a dizer que “adoraria morar no Brasil”. Seu asilo temporário na Rússia vence em agosto e ele teme pelo futuro – já que é tratado como inimigo mortal pelo império ianque. Ele garantiu ainda que “já pedi asilo ao governo” Dilma e arrematou: “Se o Brasil me oferecer asilo, eu ficarei feliz em aceitar”. O Itamaraty, porém, insiste em dizer que não recebeu qualquer solicitação formal. Mas a questão é política, e não burocrática. A presidenta Dilma Rousseff bem que poderia reavaliar o justo pedido.

Edward Snowden está asilado em Moscou há 10 meses. Ele vive escondido, na clandestinidade, por temer atentados de mercenários ianques. A entrevista à jornalista brasileira ocorreu no hotel onde ela estava hospedada, a pedido do próprio ex-analista. A sua vida de perseguido começou em junho de 2013, quando ele repassou ao repórter Glenn Greenwald e à documentarista Laura Poitras, em Hong Kong, milhares de documentos secretos sobre a espionagem dos EUA. Os documentos comprovam que a NSA monitora as comunicações por internet e telefone no mundo inteiro. O Brasil, segundo Snowden, seria uma das principais vitimas desta espionagem criminosa e ilegal.

As denúncias do ex-analista geraram profundo desgaste para o governo de Barack Obama. Em dezembro passado, a Assembleia-Geral da ONU aprovou um projeto de resolução antiespionagem apresentado pelos governos do Brasil e da Alemanha. Sem mencionar de forma direta as atividades  da NSA, o texto explicita que o direito à privacidade deve ser respeitado e protegido, inclusive no “contexto das comunicações digitais”. O documento foi considerado uma vitória da presidenta Dilma Rousseff, que criticou a espionagem em plena sessão da ONU. Diante das reações, Barack Obama se comprometeu a promover ajustes nos serviços de inteligência – ou melhor, de terrorismo!

Mas foi pura bravata. De lá para cá, pouca coisa avançou neste sentido. No último domingo (1), o jornal The New York Times revelou que a NSA obtém a cada dia milhões de fotos pessoais interceptadas em comunicações eletrônicas e que depois as utiliza em sofisticados programas de reconhecimento facial. Segundo os novos documentos secretos que vazaram, "do total de imagens coletadas diariamente, 55 mil têm qualidade suficiente para o uso em técnicas de reconhecimento facial... Após anos focando em comunicações escritas e verbais, a NSA dá agora a mesma importância a fotos de rostos, impressões digitais e outros tipos de imagens em suas operações”, revelou o NYT.

Estes e outros fatos ainda desconhecidos confirmam que seria plenamente justificado conceder asilo a Edward Snowden. O ex-analista corre perigo. Em janeiro passado, em entrevista ao canal alemão ARD, ele afirmou que “os representantes do governo [dos EUA] me querem morto”. Ele mencionou um artigo do site Buzzfeed em que membros do Pentágono teriam manifestado a vontade de acabar com sua vida. “Essas pessoas, funcionários do governo, disseram que gostariam de dar um tiro na minha cabeça ou me envenenar quando saía do supermercado e ver como morro debaixo do chuveiro”. Conhecendo as práticas assassinas do império, não há como duvidar dos seus temores!

Em carta aberta divulgada no final de 2013, Edward Snowden se dirigiu diretamente ao “povo brasileiro”. Ele justifica seus atos e adverte para os graves riscos que o mundo corre com a política intervencionista e terrorista dos EUA. O seu alerta já seria suficiente para justificar a concessão do asilo no Brasil. Seria um ato de soberania e um gesto humanitário. Confira a íntegra do documento:

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Seis meses atrás, emergi das sombras da Agência Nacional de Segurança (NSA) dos EUA para me posicionar diante da câmera de um jornalista. Compartilhei com o mundo provas de que alguns governos estão montando um sistema de vigilância mundial para rastrear secretamente como vivemos, com quem conversamos e o que dizemos.

Fui para diante daquela câmera de olhos abertos, com a consciência de que a decisão custaria minha família e meu lar e colocaria minha vida em risco. O que me motivava era a ideia de que os cidadãos do mundo merecem entender o sistema dentro do qual vivem.

Meu maior medo era que ninguém desse ouvidos ao meu aviso. Nunca antes fiquei tão feliz por ter estado tão equivocado. A reação em certos países vem sendo especialmente inspiradora para mim, e o Brasil é um deles, sem dúvida.

Na NSA, testemunhei com preocupação crescente a vigilância de populações inteiras sem que houvesse qualquer suspeita de ato criminoso, e essa vigilância ameaça tornar-se o maior desafio aos direitos humanos de nossos tempos.

A NSA e outras agências de espionagem nos dizem que, pelo bem de nossa própria "segurança" - em nome da "segurança" de Dilma, em nome da "segurança" da Petrobras -, revogaram nosso direito de privacidade e invadiram nossas vidas. E o fizeram sem pedir a permissão da população de qualquer país, nem mesmo do [país] delas.

Hoje, se você carrega um celular em São Paulo, a NSA pode rastrear onde você se encontra, e o faz: ela faz isso 5 bilhões de vezes por dia com pessoas no mundo inteiro.

Quando uma pessoa em Florianópolis visita um site na internet, a NSA mantém um registro de quando isso aconteceu e do que você fez naquele site. Se uma mãe em Porto Alegre telefona a seu filho para lhe desejar sorte no vestibular, a NSA pode guardar o registro da ligação por cinco anos ou mais tempo.

A agência chega a guardar registros de quem tem um caso extraconjugal ou visita sites de pornografia, para o caso de precisar sujar a reputação de seus alvos.

Senadores dos EUA nos dizem que o Brasil não deveria se preocupar, porque isso não é "vigilância", é "coleta de dados". Dizem que isso é feito para manter as pessoas em segurança. Estão enganados.

Existe uma diferença enorme entre programas legais, espionagem legítima, atuação policial legítima - em que indivíduos são vigiados com base em suspeitas razoáveis, individualizadas - e esses programas de vigilância em massa para a formação de uma rede de informações, que colocam populações inteiras sob vigilância onipresente e salvam cópias de tudo para sempre.

Esses programas nunca foram motivados pela luta contra o terrorismo: são motivados por espionagem econômica, controle social e manipulação diplomática. Pela busca de poder.

Muitos senadores brasileiros concordam e pediram minha ajuda com suas investigações sobre a suspeita de crimes cometidos contra cidadãos brasileiros.

Expressei minha disposição de auxiliar quando isso for apropriado e legal, mas, infelizmente, o governo dos EUA vem trabalhando arduamente para limitar minha capacidade de fazê-lo, chegando ao ponto de obrigar o avião presidencial de Evo Morales a pousar para me impedir de viajar à América Latina!

Até que um país conceda asilo político permanente, o governo dos EUA vai continuar a interferir na minha capacidade de falar.

Seis meses atrás, revelei que a NSA queria ouvir o mundo inteiro. Agora o mundo inteiro está ouvindo de volta e também falando. E a NSA não gosta do que está ouvindo.

A cultura de vigilância mundial indiscriminada, que foi exposta a debates públicos e investigações reais em todos os continentes, está desabando.

Apenas três semanas atrás, o Brasil liderou o Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas para reconhecer, pela primeira vez na história, que a privacidade não para onde a rede digital começa e que a vigilância em massa de inocentes é uma violação dos direitos humanos.

A maré virou, e finalmente podemos visualizar um futuro em que possamos desfrutar de segurança sem sacrificar nossa privacidade.

Nossos direitos não podem ser limitados por uma organização secreta, e autoridades americanas nunca deveriam decidir sobre as liberdades de cidadãos brasileiros.

Mesmo os defensores da vigilância de massa, aqueles que talvez não estejam convencidos de que tecnologias de vigilância ultrapassaram perigosamente controles democráticos, hoje concordam que, em democracias, a vigilância do público tem de ser debatida pelo público.

Meu ato de consciência começou com uma declaração: "Não quero viver em um mundo em que tudo o que digo, tudo o que faço, todos com quem falo, cada expressão de criatividade, de amor ou amizade seja registrado. Não é algo que estou disposto a apoiar, não é algo que estou disposto a construir e não é algo sob o qual estou disposto a viver."

Dias mais tarde, fui informado que meu governo me tinha convertido em apátrida e queria me encarcerar. O preço do meu discurso foi meu passaporte, mas eu o pagaria novamente: não serei eu que ignorarei a criminalidade em nome do conforto político. Prefiro virar apátrida a perder minha voz.

Se o Brasil ouvir apenas uma coisa de mim, que seja o seguinte: quando todos nos unirmos contra as injustiças e em defesa da privacidade e dos direitos humanos básicos, poderemos nos defender até dos mais poderosos dos sistemas.


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