domingo, 8 de setembro de 2013

A derrota da opinião midiática

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Por Emiliano José, na revista Teoria e Debate:

Foram muitas as leituras em torno do escândalo político-midiático. Destaco, no entanto, a contribuição de Venício A. Lima, notável pesquisador da mídia no Brasil. Duas de suas obras – uma voltada ao estudo da crise política e de poder no Brasil, outra, com vários autores, destinada à análise da mídia nas eleições de 2006 – foram essenciais para a elaboração deste texto, embora Lima, por obviedade, não tenha nada a ver com as interpretações que o autor faz a partir dessas leituras.

A mídia, como se sabe, constrói discursos, e estes nunca são inocentes. Desde 2005, a mídia hegemônica brasileira pretendeu dar quase a impressão de que a corrupção nascera com o governo Lula, como tentara dar a mesma impressão em relação ao governo Vargas. O eixo da narrativa midiática, inclusive quando do julgamento da Ação Penal 470, é o de que nunca houvera tanta corrupção no Brasil. Não fora este o comportamento da mídia quando dos oito anos do governo Fernando Henrique Cardoso, e não por falta de matéria-prima, como se sabe. A privataria tucana está aí para confirmar o que digo.

Na esteira do bordão nunca houve tanta corrupção no Brasil, um novo vocabulário espraiou-se pelas redações, revelando a disposição de fazer o escândalo tornar-se patrimônio do senso comum: mensaleiros, partidos do mensalão, pós-mensalão, valerioduto, silêncio dos intelectuais, homem da mala, doleiro do PT, conexão cubana, operação Paraguai, conexão Lisboa, república de Ribeiro Preto, operação pizza, dança da pizza, dólares na cueca, entre outras expressões, muitas delas com nítida inspiração policial, e nada ocasionais.

Apesar de nunca ter sido provada a existência de algum tipo de mensalidade paga a deputados, mensalão particularmente tornou-se uma espécie de selo de toda a cobertura jornalística, rótulo de que se valiam os diversos veículos da mídia hegemônica. Essa utilização maciça da expressão tornou-a também de uso rotineiro no meio do povo, incorporou-se efetivamente ao senso comum para as mais variadas situações.

No caso da Folha de S.Paulo, a palavra mensalão tornou-se, por largo tempo, no decurso do escândalo político-midiático de 2005-2006, uma seção fixa. A Folha, aliás, podia lembrar que, caso provado mesmo dessa coisa de mensalão, era o do governo Fernando Henrique Cardoso, quando parlamentares confessaram que o projeto de reeleição tinha sido assegurado R$ 200 mil a cada um, como disseram dois deputados do Acre, na edição de 13 de maio de 1997 da própria Folha, ao jornalista Fernando Rodrigues.

Curiosamente, ou explicavelmente, a mídia, então, não pediu CPI, não insistiu em apuração, e a reeleição teve curso tranquilo. Fernando Henrique, reeleito, continuou a governar o Brasil, com as consequências conhecidas, inclusive constrangendo o país a recorrer ao FMI novamente, em janeiro de 1999, quando o Brasil quebrou.

O escândalo político-midiático foi sendo alimentado conscientemente desde maio de 2005, às vezes com material requentado, e tinha a pretensão óbvia de alcançar as eleições de 2006. Qualquer análise mais detida irá constatar a existência de um jornalismo errático em todo esse período, já que o nítido objetivo político – desgastar Lula, o governo e o candidato a presidente – prejudicou enormemente o próprio esclarecimento dos fatos. Mais semeou confusão do que ajudou a esclarecer o que acontecia.

A velha mídia deixou o jornalismo inteiramente de lado, abandonou o trabalho de investigação, recolheu o que podia das CPIs em andamento, e tudo se transformou num festival de denúncias vazias, irresponsáveis, como a famosa matéria de Veja sobre os dólares cubanos que teriam financiado o PT. Inúmeras matérias, muitas delas querendo-se reportagens, flertavam com uma ficção de baixíssimo nível, sem nenhuma preocupação com fatos, ou com verificações, checagens, essas coisas elementares, e diria sadias, do jornalismo liberal.

A mídia na construção da narrativa para aquele específico escândalo político usou e abusou do adjetivo suposto, como se com esse artifício estivesse anistiada para fazer todo tipo de acusação sem se comprometer, como se pudesse. Produziu inúmeras denúncias vazias, insinuou, acusou, fez ilações, generalizações, lançou suspeições a torto e a direito, desde que alcançassem sempre dirigentes do PT e membros do governo Lula.

Com isso, construiu quase que uma cláusula pétrea no desenvolvimento de sua cobertura: a presunção de culpa. Bastava ter qualquer indício, ou inventá-lo, para em seguida concluir que a pessoa envolvida era culpada. Cabia ao acusado correr atrás do prejuízo, tentar provar sua inocência, se inocente fosse. A mídia hegemônica tornou-se um tribunal de exceção, e o cidadão brasileiro restou inteiramente desamparado.

O bombardeio contra o governo Lula e contra o próprio presidente Lula foi intensificado entre os meses de julho, agosto e setembro de 2005, quando parecia que nada mais ocorria no país senão a crise que, naquela dimensão, fora construída inegavelmente pela mídia. O Jornal Nacional, da Rede Globo, chegou a ocupar mais de dois terços de seu tempo dedicados exclusivamente à crise. Artilharia pesada, e consciente do alvo a atingir.

Desenhava-se o quadro, insista-se, de um país paralisado, engolfado numa crise terminal, o que absolutamente não correspondia à realidade. E os desdobramentos políticos demonstrarão isso: o país caminhava, a vida do povo se modificava para melhor, e não haveria como esconder isso, apesar do tsunami midiático.

Antes mesmo da crise alcunhada mensalão, Veja, sempre ela, inventou, e não há exagero em dizer isso, a conexão das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) com o PT, isso em março de 2005. Entre maio de 2005 e janeiro de 2006, a revista produziu, na sua fúria antipetista, pelo menos vinte capas sobre o escândalo político do mensalão, todas destinadas ao desgaste do partido, do governo e do presidente Lula. A revista IstoÉ, um pouco menos: catorze capas. Dou esses dois exemplos, embora toda a mídia hegemônica tenha seguido na mesma linha. Sangrar e sangrar, até o fim. Ver até quando o cabra aguenta.

E Veja, bem, esta rasgou a fantasia. Restou nua, no meio da multidão. Fugiu inteiramente de quaisquer padrões jornalísticos, nem sequer simulou. A partidarização, a raiva contra o PT, contra o governo, contra Lula provocou um afastamento completo de qualquer vestígio de jornalismo, mesmo o liberal – este, como se sabe, reclama algum compromisso com a verdade, pretende-se ancorado em fatos, minimamente ao menos.

A revista perdeu qualquer dignidade, deixou de lado qualquer prurido ético: associou o PT a animais como burro e rato, formulou denúncias sem nenhuma comprovação contra familiares do presidente da República, inventou dinheiro ilegal proveniente da Colômbia e de Cuba para campanhas eleitorais do PT. Era o cangaceiro mais ousado e menos dado a considerações morais ou éticas. Levava a peixeira mais afiada. Não se impunha limites. Para ela, tratava-se de um vale-tudo.

O cangaceiro, peixeira em punho, extrapolou. Na edição de 17/5/2006, publicou um falso dossiê com acusações graves contra o presidente Lula e outros integrantes de seu governo. E o curioso – e criminoso: a própria revista, a evidenciar sua irresponsabilidade e sua fúria contra Lula, reconhece não ter conseguido comprovar o que publicara. Mas publicou.

Lula respondeu duramente ao falso dossiê: “crime, mentira, irresponsabilidade, leviandade, jornalismo de podridão”. Dessa vez, a revista fora longe demais. O jornal O Estado de S. Paulo, de 17/5/2006, condenou Veja por denuncismo, por ter como objetivo desintegrar o governo, e por agredir as normas éticas. O Estadão, como se sabe, nunca teve simpatia alguma pelo governo Lula. Considerou, no entanto, que Veja invadira sinal vermelho.

Para dizer de modo elegante, a mídia hegemônica, na campanha de 2006, evidenciou sua partidarização e, na cobertura, um claro desequilíbrio entre Lula e os demais candidatos. Nessa operação de sangramento de Lula, antecipou muito a campanha eleitoral. A fúria moralista e as cobranças éticas feitas ao presidente da República e ao candidato Lula eram obviamente seletivas, uma vez que nem de longe ocorreram dessa maneira durante os oito anos do governo FHC, pródigo em pautas bastante sólidas para uma atitude jornalística investigativa. Nos principais jornais e nas principais revistas semanais de informação houve um número significativamente maior de matérias negativas sobre Lula em relação aos demais candidatos, e essa cobertura negativa atingiu o ápice às vésperas da realização do primeiro turno.

Um delegado da Polícia Federal, Edmilson Pereira Bruno, em São Paulo, fez fotos de dinheiro apreendido em mãos de pessoas vinculadas ao PT que serviria para a compra de um dossiê que incriminaria o PSDB na aquisição fraudulenta de ambulâncias à época em que José Serra era ministro da Saúde. Distribuiu as fotos para jornalistas da Folha de S.Paulo, O Estado de S. Paulo, O Globo e Rádio Jovem Pan, combinando com eles a versão de que as fotos haviam sido roubadas das mãos dele. Como se vê, uma ação de caso pensado, operação da Polícia Federal destinada a prejudicar o PT, a candidatura de Lula, levar a eleição para o segundo turno.

O delegado foi além: estabelecia como condição que as fotos, 23, deviam chegar no mesmo dia ao Jornal Nacional, da Rede Globo. Crime premeditado. Sabia do impacto da dinheirama exibida na tela da tevê, era algo em torno de R$ 1,7 milhão. O policial provavelmente integrava o que Leandro Fortes chamou “máquina de moer inimigos” montada dentro da Polícia Federal, sob direção tucana. Essa definição ele dera ao analisar o caso Lunus, operação que destruiu a candidatura Roseana Sarney em 2002. A operação podia resultar, como resultou, em levar a eleição para o segundo turno. Disso provavelmente sabiam o delegado e quem estava por detrás dele, e também os jornalistas, a quem nesse caso não se pode e não se deve dar o benefício da inocência.

Inocência é uma palavra indecente aqui, ou imprópria, para ser mais elegante. Nessa campanha, de modo muito especial, prevaleceu uma atitude de hostilidade dos jornalistas da grande mídia com Lula, não há como esconder essa realidade. A maioria esmagadora dos profissionais da mídia hegemônica aderiu de corpo e alma ao antilulismo e ao antipetismo.

Não se podia mais acreditar numa ação orquestrada, sobretudo, pelos dirigentes da mídia, como ocorreu em 1989, quando o reportariado era simpático ao candidato Lula, e era constrangido a fazer a cobertura negativa. A partir especialmente de 1998 desenvolveram-se o antipetismo e o antilulismo dos repórteres jovens, características que ganharam intensidade muito maior a partir do episódio denominado mensalão, em 2005.

Aqui, o antilulismo e o antipetismo se alastraram viroticamente. Tornou-se quase moda entre os jornalistas ser contra Lula e contra o PT. A ideologia neoliberal fortaleceu essa moda. Quase não eram mais necessárias ordens vindas de cima para que Lula e o PT fossem combatidos, e para tanto os critérios do jornalismo, como a apuração rigorosa dos fatos, tornaram-se uma espécie de adereço, utilizável só esparsamente. Mais valia a pauta preestabelecida, o teste de hipóteses, mais valia a versão orientada ao combate.

No primeiro turno, Lula teve 48,61% dos votos válidos, 46,6 milhões; e Geraldo Alckmin, 41,64%, com 39,9 milhões. A eleição foi para o segundo turno, com a ajuda decisiva da velha mídia, com o estardalhaço feito em torno do episódio montado pela Polícia Federal. As manchetes, as fotos, as edições do jornalismo impresso nesse caso guardavam impressionante semelhança. Não havia necessidade de nenhuma combinação prévia para que as edições se parecessem tanto. E a mídia televisiva seguiu na mesma esteira.

No segundo turno, as coisas não andaram como desejadas pela mídia hegemônica. Apesar de todo o esforço para derrotar Lula, este venceu com 60,83% dos votos válidos, 58,2 milhões, contra 39,17% de Alckmin, com 37,5 milhões, surpreendentemente menos votos do que obtivera no primeiro turno. A vitória, para além dos aspectos estritamente políticos, evidentemente essenciais, indicava que acontecera, nessas eleições, um evidente descolamento entre a opinião dominante da mídia e a opinião da maioria dos eleitores. O partido midiático sofrera outra derrota, e isso numa conjuntura em que jogou todas as fichas para derrotar o seu adversário: Lula.

A pretensão de que a opinião pública confundia-se com a opinião midiatizada, dos jornais, tevês e emissoras de rádio, caía por terra de modo acachapante. Houve aqui um evidente crescimento da cidadania, da consciência política da população, inclusive, e quem sabe principalmente, das camadas mais pobres da população. Estas, de modo especial, não estavam mais submetidas às ondas provenientes das elites pretensamente esclarecidas, tampouco da mídia hegemônica. A teoria da pedra no lago esvaíra-se. Os pobres construíram seu próprio esclarecimento, seus próprios critérios de avaliação, e decidiram a eleição para além da cantilena midiática, embora não apenas eles. Outros setores da sociedade se libertaram do discurso autoritário dos meios de comunicação hegemônicos.

Registre-se que a sociedade civil no Brasil, que viera se desenvolvendo desde a ditadura, cresceu muito com a institucionalização de diversas formas de participação popular fixadas na Constituição de 1988, e com o estímulo de tal participação sob o governo Lula, especialmente através das conferências municipais, estaduais, regionais e nacionais, que mobilizaram centenas de milhares de pessoas, e fizeram naturalmente crescer a consciência cidadã de cada uma delas e possibilitar uma consciência crítica coletiva muito mais aguçada, muito pouco propensa a manipulações midiáticas.

Não se desconheça a importância que passaram a ter os blogs e sites da internet que remavam contra a maré da grande mídia. Esta, por sua partidarização, por sua fuga completa de critérios jornalísticos, teve sua credibilidade posta em questão pela população antes mesmo do resultado eleitoral. Uma pesquisa realizada pelo Instituto GlobeScan, em março de 2006, ouvidas mil pessoas de nove regiões metropolitanas, constatou que 55% dos entrevistados não confiavam nas informações obtidas através da mídia, 80% afirmaram que a mídia exagera na cobertura das notícias ruins, 64% concordavam que raramente encontram na grande mídia as informações que gostariam de obter, 45% não concordavam que a cobertura da grande mídia fosse acurada e 44% declararam ter trocado de fonte de informação nos 12 meses anteriores por simplesmente ter perdido a confiança.

Decididamente, como se vê, não era uma situação confortável.

Num balanço aligeirado, pode-se afirmar que as eleições de 2006 foram marcadas pela vitória da grande política, pela afirmação de um projeto, de um partido, da política de alianças, pela consolidação de uma grande liderança, Lula, pela volta por cima de uma crise político-midiática de grandes proporções, que evidenciou, na sua superação, a visão crítica da sociedade brasileira. Esta recusou a visão neoudenista em andamento porque sentiu claramente o efeito positivo das políticas que provocaram mudanças substanciais na vida das maiorias. Compreendeu que a ética da política, desenvolvida pelo governo Lula, era bem maior e mais importante do que o barulho causado pelo escândalo político-midiático que fora colocado à sua frente.

A política do governo favorecia claramente os mais pobres, e era isso que, sobretudo, importava. Mas não bastava. A sociedade estava atenta também aos inegáveis esforços de Lula e seu governo no combate à corrupção, esforços que não deviam nunca cessar. A ética da política devia, também, comportar uma política clara de combate à corrupção, com o fortalecimento de todas as instituições destinadas a fiscalizar a aplicação do dinheiro público e a tornar a coisa pública inteiramente transparente. E isso foi feito pelo governo Lula desde o início, especialmente com a criação e fortalecimento da Controladoria-Geral da República.

E, como já se disse, nesse balanço não se pode deixar de enfatizar a distância óbvia entre a opinião midiática e a opinião pública. Esta resolveu apostar no projeto político hegemonizado pelo PT e liderado por Lula. O Brasil continuaria sua caminhada de mudanças.

Referências

- Retrato do Brasil. “A construção do mensalão – Como o Supremo Tribunal Federal, sob o comando do ministro Joaquim Barbosa, deu vida à invenção de Roberto Jeferson. São Paulo, abril-maio, 2013. Edição Especial.

- Leite, Paulo Moreira. A outra História do Mensalão: as Contradições de um Julgamento Político. São Paulo: Geração Editorial, 2013.

- Lima, Venício A. de. Mídia: Crise Política e Poder no Brasil. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2006.

____. (org.). A Mídia nas Eleições de 2006. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2007.

- Ruy, José Carlos. “Raízes do mensalão: nem 1998, 2004 ou 2005; conheça o pontapé inicial”. Pragmatismo Político [S. l.], 7/8/2012. Disponível em: http://www.pragmatismopolitico.com.br/2012/08/raizes-mensalao-esquema-pr.... Acesso em: 22/7/ 2013.

- Thompson, John B. O Escândalo Político: Poder e Visibilidade na Era da Mídia. Petrópolis RJ: Vozes, 2002.

* Emiliano José é professor-doutor (aposentado) em Comunicação e Cultura Contemporâneas da Universidade Federal da Bahia, jornalista, escritor e integrante do Conselho de Redação de Teoria e Debate.

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