domingo, 16 de junho de 2013

Os protestos e a lógica capitalista

Por Fábio Salem Daie, no sítio Opera Mundi:

No sentido de uma crise generalizada do contexto sócio-econômico nacional e mundial, podemos afirmar que as manifestações iniciadas contra o aumento das passagens de ônibus, em diversas cidades do Brasil, são “políticas”. No entanto, parece não ser este o sentido outorgado a elas, ao menos pelos gestores estaduais. Alarmados com a força demonstrada pela articulação popular (iniciada pelo Movimento Passe Livre), os governadores de São Paulo e do Rio de Janeiro, Geraldo Alckmin (PSDB) e Sérgio Cabral (PMDB), apressaram-se em tachar os protestos, na última quinta-feira, de “políticos”: querendo significar, entretanto, que se tratam na verdade de estratégias partidárias e não de “mobilizações espontâneas”.

Tal ótica não somente se mostra falsa sob o aspecto organizativo do movimento (grandemente impulsionado pelas redes sociais e composto por uma gama ampla de componentes ideológicos) como também impede que uma mobilização há muito não vista possa ser, de fato, compreendida. Algo novo surge, ainda que não se possa prever seu desdobramento. E isso é inegável.

Na esteira de movimentos populares que tomaram praças e ruas ao redor do mundo nos últimos anos, também este se apresenta como uma surpresa desagradável aos gestores da res publica, tornada, a partir da década de 1990, cada vez mais assunto dos negócios privados (bem como o transporte coletivo em São Paulo e em outras regiões). Mesmo na televisão, jornalistas comentavam, à luz dos confrontos nas ruas, que nunca haviam realizado antes a cobertura de protestos “deste tipo”.

Nesse momento, no entanto, boa parte dessa mesma imprensa está fazendo a lição de casa: mostra imagens de policiais feridos; conta histórias de “gente de bem” cercada pelo cenário de guerra civil; relata atos de “vandalismo” contra o patrimônio público e privado. A “violência”, na boca das autoridades municipais, estaduais e federais, é “inaceitável”.

Na ‘vanguarda’ da violência

A repressão policial, ainda mais brutal durante os protestos da quinta-feira (13/06), chegou a ferir não somente manifestantes, mas também repórteres e fotógrafos, chamando a atenção de setores trabalhistas e de organizações como a Anistia Internacional. Essa resposta das forças de contenção já era esperada e, no entanto, tem sido colocada, par a par, com os ditos atos de “vandalismo” e “depredação” protagonizados por uma parcela ínfima dos participantes do movimento. Reside aí a noção, ainda que difusa, de que se tratam de “excessos” de ambos os lados, que ferem, de igual modo, o chamado Estado democrático de direito. Justamente aí, acreditamos, reside também o verdadeiro eixo do debate.

Em literatura (e contra o senso comum generalizado), grandes escritores como Alejo Carpentier sustentam que as manifestações latino-americanas, longe de seguirem as vanguardas europeias, na verdade as precederam. Pois bem, no que concerne à estruturação e ao treinamento de um aparato repressivo “de massa”, tal pensamento parece ser igualmente válido. No processo de desmonte do governo civil-militar, quando da redemocratização do Brasil na década de 1980, intelectuais como Florestan Fernandes já chamavam a atenção para o fato de que não bastava livrar o Estado das mãos autoritárias de seus milicos. Era preciso também destruir os aparatos repressivos construídos sob esse regime. Entre eles, a própria polícia, com seu caráter militar: excrescência desse período, constituída na transição da década de 1960 a 1970.

A manutenção dessa instituição, sob os augúrios da democracia liberal que chegava à cena já sob o signo da crise mundial do capitalismo (explodida nos anos setenta), era uma aposta inteligente da elite nacional sobre o que o destino (economicamente turbulento) poderia reservar à Ordem e ao Progresso.

É nesse sentido que países como Brasil e Chile se adiantam a diversas nações europeias na “vanguarda” da estrutura repressiva do capital, composta (para que fique claro) inclusive por elementos extremamente sutis, como a propaganda e a legislação trabalhista. É David Harvey, em seu A Brief History of Neoliberalism, quem nos dá uma boa ideia da importância do monopólio da violência pelos Estados no século XXI.

De acordo com ele, a reconstrução do poder de classe a níveis apenas vistos antes de 1929 (é assim que o geógrafo britânico interpreta o neoliberalismo) demanda, inevitavelmente, não apenas a apropriação privada de âmbitos incrivelmente expandidos da vida pública e comunal das sociedades, senão também a manutenção estatal de uma instituição inalienável: sua força policial. Tal força é a contraparte necessária a esse processo, quando as “liberdades de mercado” mostram-se aos poucos incompatíveis com os anseios democráticos de uma parcela cada vez maior das populações.

“O Estado tem portanto de usar seu monopólio dos meios de violência para preservar a todo o custo essas liberdades”, diz Harvey, e completa: “Com cerca de 2 bilhões de pessoas condenadas a viver com menos de 2 dólares por dia, o cruel mundo da cultura consumista capitalista, as fenomenais gratificações obtidas pelos serviços financeiros e a polêmica auto-satisfeita quanto ao potencial emancipador da neoliberalização, da privatização e da responsabilidade social têm de ser uma piada macabra”.

A herança inalterada de uma força militar repressiva agindo em âmbito estritamente civil apenas nos mostra que as camadas dominantes – políticas e econômicas – de algumas repúblicas latino-americanas já se preparavam, desse modo (com maior ou menor consciência), para os conflitos e tensões que o achatamento generalizado de todos os âmbitos da existência social teria sobre os seus cidadãos. A própria Secretaria de Segurança Pública, em 2011, divulgou dados que mostram que a Polícia Militar paulista matou 6,3% mais que toda a polícia dos Estados Unidos entre 2005 e 2009.

Não por outra razão, um relatório divulgado pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU, em maio de 2012, sugeriu ao governo brasileiro que literalmente suprimisse a instituição, acusada de diversos homicídios extrajudiciais. Por sua vez, a própria revista Veja São Paulo (aliada política do governo do Estado) elaborou reportagem em que constatava que, em 2011, 6.122 policiais militares haviam se formado, constituindo um contingente 50% maior do que o dos anos anteriores, o que implica ainda menos tempo de treinamento. Não obstante, relata a revista, “de 2006 para cá, São Paulo teve um aumento de 15% nos furtos e de 93% nos latrocínios, entre outros dados preocupantes”. Tais números deixam ver não apenas a ineficiência dessa organização, senão também os princípios originais para os quais foi criada e que são sua raison d’être: a contenção de mobilizações populares.

Do cinismo sobre a violência

À luz desse quadro, temos uma leve ideia do cinismo que jaz por trás das acusações de autoridades e de boa parte da grande imprensa (principalmente televisiva) sobre os “atos de violência” – por parte dos manifestantes – que marcaram alguns protestos. O menor olhar panorâmico sobre a constituição do atual “Estado democrático de direito” e sua evolução nos termos neoliberais mostra que é esse Estado quem antepõe a violência, mesmo a mais brutal, em sua própria estrutura “democrática”. A existência de uma instituição policial de molde militar carrega, implícita, a prevalência da violência contra a disseminação de mobilizações de anseio popular, com as quais supostamente devem caminhar o ordenamento político e jurídico.

No entanto, o verdadeiro avanço dos recentes protestos ao redor do mundo é a percepção crescente de que esse mesmo ordenamento se mostra incapaz de proteger os direitos humanos mais elementares. A relação promíscua existente entre os representantes políticos e as mesas diretoras das grandes corporações e bancos expõe os comprometimentos elitistas os quais a democracia parlamentar e a república estão, hoje, sujeitas.

Neste ponto, vale a pena recuperar o raciocínio de David Harvey sobre as crises advindas de tais comprometimentos. Ele diz: “As classes altas, insistindo em seu sacrossanto direito de propriedade, preferiram [refere-se às décadas de 1920 e 1970] fazer o sistema vir abaixo a renunciar a algum privilégio ou ao poder. Ao agir assim, não estariam se esquecendo de seus próprios interesses, pois caso se posicionem bem, poderão lucrar com o colapso [como revela a declaração de Warren Buffett sobre o “excelente” ano de 2012 para os milionários].

Alguns membros seus poderão ser apanhados e acabar se jogando de alguma janela de Wall Street, mas essa não seria a norma. O único temor que têm é de movimentos políticos que os ameacem de expropriação ou de violência revolucionária. Embora possam ter a expectativa de que o sofisticado aparato militar com o qual contam hoje proteja a sua riqueza e o seu poder (...)”. Não se trata, aqui (e certamente não é disso que fala Harvey), de fazer apologia à violência. Trata-se, sim, de compreender que a mesma sempre esteve presente, em maior ou menor grau, nos processos efetivos de transformação histórica das sociedades.

E mais: essa violência expressa algo muito específico. Se, no século XIX, os operários ingleses se lançaram contra o maquinário fabril por ver nele a razão de sua miséria extrema, hoje, os mesmos trabalhadores e estudantes se lançam contra equipamentos estatais e privados por enxergar neles (como negar essa hipótese de lucidez?) expressões materiais da promiscuidade generalizada entre interesses públicos e privados, razão de suas insatisfações e frustrações profundas. Dirão alguns, entretanto, que essa violência não é politicamente motivada, senão um mero ato de “vandalismo”.

Ainda assim, mesmo sob tal aspecto – sem dúvida alguma, condenável –, em termos de destruição esses atos estão longe de poder comparar-se ao radical processo de destruição-criativa, com que regiões inteiras do planeta são devastadas a fim de permitir a reprodução ampliada do capital. Harvey chamou isso de um retorno, no neoliberalismo, à “acumulação por espoliação”, necessária à sobrevivência do sistema. A jornalista e ativista canadense Naomi Klein tratou desse mesmo fenômeno em seu documentário A Doutrina do Choque. Ou seja, mesmo sob o aspecto da destruição pura, não é possível comparar os efeitos desses atos de “vandalismo” àqueles que apenas se acentuaram em todo o planeta há cerca de quarenta anos, e que constituem a ordem defendida pelas autoridades atuais.

Por qual democracia?

Por fim, após quatro mobilizações que arrastaram milhares de pessoas às ruas e lograram o apoio da maioria da população da capital paulista, está em jogo também isto: o sentido atribuído à palavra “democracia”, como praticada nas repúblicas ocidentais contemporâneas.

O filósofo esloveno Slavoj Žižek, quando de sua intervenção junto ao movimento de ocupação de Wall Street, em 2011, lembra (citando Alain Badiou): “hoje, o nome do pior inimigo não é capitalismo, império, exploração ou algo similar, mas democracia: é a ‘ilusão democrática’, a aceitação dos mecanismos democráticos como a moldura fundamental de toda mudança, que evita a transformação radical das relações capitalistas”. Assim, a democracia parlamentar, fundada sob o paradoxo do “mudar para que nada mude”, fornece ela mesma um sentido específico para os protestos: marcar a diferença entre o que “eles” chamam de “democracia” e o que “nós” vemos como limites inaceitáveis dessa mesma “democracia”.

Em um livro seminal, Dolf Oehler mostra como as jornadas de junho de 1848, em Paris, colocavam pela primeira vez em disputa a hegemonia sobre o significado das palavras “Liberdade”, “Igualdade”, “Fraternidade”, erguidas pela primeira vez em 1789. Karl Marx, em A Guerra Civil na França, já havia atentado para essa disputa simbólica, resolvida nas ruas, por sobre as barricadas, entre a população pobre e o exército da burguesia liderado pelo general Cavaignac. Guardadas as devidas e importantes proporções, resta esperar que o mesmo, agora em relação ao real significado de “democracia”, esteja finalmente colocado em jogo, no Brasil, daqui em diante.

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