sábado, 12 de maio de 2012

A mudança no mapa político da Europa

Por João Novaes, no sítio Opera Mundi:

Ao fim de fevereiro, o mapa político da Europa estava pintado de azul. Indignados pelo agravamento da crise das dívidas soberanas e atemorizados por uma campanha de medo que alardeava consequências apocalípticas caso as medidas de austeridade fiscal não fossem aplicadas, os eleitores europeus votavam sistematicamente em candidatos de direita com orientação econômica liberal – os preferidos pelos mercados. A União Europeia chegou ao ponto de ter 23 de seus 27 membros (incluindo todos os países mais fortes economicamente) comandados por partidos harmoniosamente alinhados com as determinações da Troika (grupo formado pela Comissão Europeia, Fundo Monetário Internacional e Banco Central Europeu), capitaneados pela chanceler alemã Angela Merkel. A receita para combater a crise, seguida à risca por eles, parecia única: cortes em serviços públicos, aumento da idade de aposentadorias e reduções salariais para aposentados e funcionários públicos, entre outros.


“O Estado não funciona com a mesma lógica das finanças pessoais, onde não se deve gastar mais do que se ganha, pois há um elemento importante: investimentos. Em Portugal, durante a ditadura salazarista, havia um rigoroso regime fiscal. O país não devia nada, tinha os cofres cheios, mas era paupérrimo. Claro que o déficit fiscal sistemático é complicado. Mas o que os liberais contemporâneos fazem hoje é apresentar o rigor fiscal como a única pilastra do sistema, uma condição si ne qua non. Mas é apenas uma variável econômica”, explica Williams da Silva Gonçalves, professor de Relações Internacionais da Uerj (Universidade Estadual do Rio de Janeiro), em entrevista ao site Opera Mundi.

Nesse contexto, foi fácil aprovar, entre fevereiro e março, o “Pacto de Estabilidade e Crescimento” (ou Pacto Fiscal Europeu, como é mais conhecido). Esse acordo determina programas de estabilidade e convergência fiscal e proíbe que os déficits públicos dos signatários ultrapassem 3% do PIB. Com a exceção do Reino Unido e da República Tcheca, todos assinaram. Agora, os acordos se encontram em processo de ratificação por seus governos.

No entanto, a partir de fevereiro, esse quadro começou a mudar radicalmente, culminando no último domingo (06/05) com a vitória do socialista François Hollande na França e na pulverização partidária na eleição legislativa na Grécia, epicentro da crise. Países como Dinamarca, Eslováquia, Romênia, Bélgica e Holanda tiveram movimentos semelhantes. E até na Espanha e no Reino Unido governos conservadores começam a ter sua popularidade atingida.

A insatisfação da população, principal afetada pelas medidas, foi refletida nas urnas. Muitos eleitores gregos e franceses passaram a acreditar em propostas alternativas para a crise que não passam por mais arrocho salarial e desemprego - seja de partidos moderados, caso do PS francês, seja de legendas mais à esquerda, como coalizão Syriza, que alcançou o histórico segundo lugar nas eleições do último domingo. Ambos sugerem incentivar o crescimento econômico a partir de investimentos públicos – para a irritação de Merkel, que já começa a se indispor com Hollande.

O novo presidente francês foi o primeiro líder a propor mudanças no pacto fiscal, e ameaça não ratificá-lo. Tanto a Alemanha, onde Merkel continua com altíssima popularidade, quanto a União Europeia já se posicionaram contrariamente. Seu antecessor, Nicolas Sarkozy era o principal aliado de Merkel no cenário geopolítico europeu. “O acordo não pode ficar sem a França, pois já não tem o Reino Unido. Os alemães terão de ceder e algo terá de ser mexido”, diz Gonçalves.

“Este conflito terá uma repercussão importante, porque o eixo França-Alemanha é o coração da UE. É impossível dizer como esse impasse se resolverá, mas ele deixará de ser tratado como uma questão meramente administrativa, e sim política, que dependerá de negociações e diálogos”, diz Gonçalves.

A União Europeia já prepara um texto (sem relação com o pacto) incentivando o crescimento que tenta aproximar as duas visões. Todas elas constavam no programa de Hollande, como a criação de títulos da dívida europeus destinados a programas de infraestrutura e o aumento substancial de capital do banco Europeu de Investimentos.

Para Gonçalves, mesmo no país onde a austeridade é mostrada como o exemplo a ser seguido, ela gera também resultados desfavoráveis à população. “Mesmo com a Alemanha apresentando alguns índices econômicos superiores ao resto do bloco, o índice de desemprego é relativamente alto (7%), e a precariedade no mercado de trabalho aumentou demais. O país continua com uma capacidade de exportação muito forte, portanto tem dinheiro para sustentar um pesado seguro-desemprego, isso deixa situação ainda sob controle”, afirma.

Reviravolta

Até agora, desde que a crise estourou em agosto de 2008, 16 governos do bloco já caíram, seja pelas via das urnas ou por moções no Parlamento. A diferença é que, no início, os defensores da austeridade tomavam lugar tanto de governos progressistas quanto de liberal-democratas, acusados de serem os culpados pelo crescimento descontrolado da dívida. Os mesmos, à exceção do Pasok na Grécia, começam a ganhar espaço por adotarem posições defendendo uma maior heterodoxia fiscal – ainda que moderada. Essa mudança de mentalidade resultou também no crescimento de partidos de esquerda, como a Frente de Esquerda na França, a Esquerda Unida na Espanha e principalmente a Syriza, na Grécia.

A primeira reação ocorreu um pouco antes do início deste ano: em setembro de 2011, na Dinamarca, país que era apontado como exemplo em fazer “a lição de casa” exigida pela Troika, a social-democrata Helle Thorning-Schmidt tomou o comando do ex-premiê liberal Lars Lokke-Rasmussen.

Em março, Robert Fico, presidente do partido social-democrata eslovaco, sucede a premiê liberal Iveta Radicova. Fora das urnas, o primeiro-ministro de centro-direita da Romênia, Mihai Razvan, foi derrotado em 27 de abril ao não conseguir passar uma moção de confiança no Parlamento. A decisão foi comemorada nas ruas. Caberá ao jovem Victor Ponta (social-democrata) a responsabilidade de formar um novo governo.

A França pode ter como aliados a Bélgica, que após 589 dias sem governo, também é vítima da crise, e agora é governada pelo socialista Elio di Rupo em um governo de coalizão. E também pela Holanda, já que o liberal Mark Rutte, que havia assumido em 2010, pediu demissão por não conseguir formar aprovar o orçamento para 2013, abrindo possibilidade para uma ascensão dos Trabalhistas de centro-esquerda na próxima eleição em setembro.

E a insatisfação não ocorreu somente em países que tiveram eleições nacionais. Na Espanha, o PP do primeiro-ministro Mariano Rajoy (Partido Popular) perdeu as eleições nas comunidades (equivalentes às estaduais) de Andaluzia e Astúrias, tidas como ganhas. Na semana passada, o governo Conservador britânico de David Cameron sofreu forte revés nas eleições distritais (embora tenha mantido controle sobre a capital Londres).

“Esses resultados traduzem a insatisfação não somente em relação à crise, mas pela forma em que ela está sendo tratada. Sarkozy, ao lado de Merkel, apresentaram uma solução liberal clássica: de que para reverter a crise do capital se deve reduzir os gastos públicos. A vitória do PS é sinal que há outras maneiras de se enfrentar a crise, não tem de ser assim. Os socialistas franceses reivindicam a solução keynesiana: a crise do capital se resolve mediante elevação dos gastos públicos para reativar o setor produtivo. A política conservadora atende aos banqueiros, a keynesiana o povo”, diz Gonçalves.

“A Alemanha pode ser poderosa, mas se não se cuidar pode ficar politicamente isolada na Europa”, afirma o francês Alexis Saludjian, professor de Economia na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).

Desconfiança à esquerda

Saludjian, no entanto, é cético quanto a maiores possibilidades de mudança, pois lembra que o Partido Socialista na França historicamente frustrou seu eleitorado quando este apostava em mudanças mais à esquerda desde a época de François Mitterrand (1981 -1995). E que boa parte do eleitorado francês foi atraído por discursos tanto da direita liberal quanto a xenófoba.

“Internamente, não se espera por mudanças brutais. Boa parte das reformas liberais iniciadas em 1995 (quando Jacques Chirac assumiu a presidência) não serão revistas por Hollande”. Para o economista, a tendência é que Hollande adote medidas de “um caráter reformista bem marginal, mantendo as principais políticas liberais”.

“Antes de sabermos o que Hollande será capaz de fazer, é preciso esperar o resultado das eleições legislativas (nos dias 10 e 17 de junho). Se o PS não obtiver a maioria, o país seria governado por um governo de coabitação. Nessa situação, a margem de manobra de Hollande ficaria ainda menor. Devemos lembrar que a diferença no segundo turno foi pequena (3,3 pontos percentuais) e que a maioria do eleitorado optou por partidos de direita no primeiro. Já se der certo, ele terá legitimidade e força para dar início às mudanças ao menos no plano interno”, adverte Saludjian.

“O discurso de Hollande em prol do crescimento não prevê que ele ocorra através das despesas públicas, mas através de reformas estruturais sobre o mercado de trabalho ainda mais ‘liberais’. Juntos, PS e UMP (União por um Movimento Popular, direita conservadora) lutaram pela aprovação do liberal Tratado de Lisboa em 2005, com Hollande à frente. O povo o recusou via referendo, mas eles aprovaram à força no Parlamento (em 2008)”.

Uma esperança para que o PS possa realmente cumprir as metas que prometeu, e ir até mais além, segundo o economista, dependerá do desempenho da coligação Frente de Esquerda, capitaneada por Jean-Luc Mélenchon, que obteve 11,11% no primeiro turno, em abril. Graças à mobilização que provocou, a esquerda obrigou o PS a adotar propostas mais progressistas durante a campanha.

O peculiar caso grego

Na Grécia, primeiro país do bloco onde a crise da dívida soberana explodiu, a situação política no país tornou-se, desde domingo, tão complicada quanto a econômica. Os dois partidos tradicionais Nova Democracia (direita) e Pasok (Partido Socialista Pan-helênico, centro-esquerda), que desde o estouro da crise se submeteram sem contestação às exigências da Troika em troca de aportes financeiros e perdão da dívida, pagaram o preço nas urnas.

Por dois assentos, os dois antigos rivais, agora unidos, não conseguiram atingir a maioria no Parlamento (149 membros de 300). Até agora, todas as tentativas de formação de um novo governo fracassaram. Se novas eleições forem realizadas, a coligação de esquerda, Syriza, que teve um desempenho surpreendente (com 52 membros, à frente do Pasok), tem chance até de ficar em primeiro lugar. Seu líder, o jovem Alexis Tsipras já rejeitou participar de qualquer coligação que leve a austeridade em consideração: “É óbvio que o veredicto popular torna nulo o acordo de resgate”, afirmou durante a semana.

Amedrontados com essa possibilidade, a Alemanha e a União Europeia já ameaçam expulsar o país mediterrâneao da zona do euro. Com exceção da Nova Democracia e do Pasok, todos os demais partidos se opõem às medidas da Troika. “O resultado de domingo na Grécia revela o descrédito a que estão relegados os dois principais partidos, que se comprometeram com esses acordos”, afirma Gonçalves.

“A margem de manobra de quem quer que esteja à frente do governo é mínima. Mas o resultado desta eleição significa um basta da população à toda política de austeridade. Mostra que a situação dos governos de direita, centro-direita e centro-esquerda não trarão de volta o crescimento. Ao mesmo tempo, a volta de um partido de inspiração nazista mostra que a Europa ainda não aprendeu com as lições do passado”, lamentou Saludjian, referindo-se à presença inédita do partido neonazista Amanhecer Dourado no Parlamento grego.

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