quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

A quem pertence a internet?

Por Eduardo Sales de Lima, no jornal Brasil de Fato:

Pressão da sociedade e falta de apoio no Congresso estadunidense causaram o adiamento da votação do Sopa (Stop On-line Piracy Act – Pare com a pirataria on-line, em tradução livre) e do Pipa (Protect IP Act – Ato pela proteção da Propriedade Intelectual) em prazo indefinido. As duas propostas visam bloquear o acesso a sites e aplicações na internet que sejam consideradas violadoras da propriedade intelectual estadunidense. Em outros termos, poderão influir no próprio caráter de compartilhamento livre de informação.
“A sociedade estadunidense está insatisfeita com o Congresso e a percepção é que congressistas só ouvem o lobby [da indústria do copyright] e não o interesse público. Hoje apenas 9% dos americanos aprovam o trabalho do Congresso, uma baixa histórica. O Sopa e o Pipa, são exemplos de medidas que justificam essa desaprovação”, afirma Ronaldo Lemos, da Universidade de Princenton e apresentador do Mod MTV.

No início de janeiro, em uma entrevista à TV pública espanhola, o sociólogo Manuel Castells salientava que “conservar o poder requer manter o máximo controle possível sobre a informação, e assegurar, sobretudo, que os canais de comunicação sejam verticais”.

A “indústria dos copyright (dos direitos autorais referentes a filmes, músicas e livros)”, percebeu que não adiantava dizer que é crime compartilhar informações para manter seu poder, como lembrou Castells. “Se eles não conseguem intimidar o cidadão, querem criar um tipo de um bloqueio a Cuba no ciberespaço.

Eles perceberam que têm que agir nos provedores da rede, nos provedores de conexão”, afirma o sociólogo e consultor em comunicação e tecnologia, Sérgio Amadeu da Silveira.

Apesar do adiamento da votação desses projetos de lei figurar como uma vitória parcial da sociedade civil, o governo de Barack Obama sinalizou que está à disposição do lobby da “indústria do copyright” ao fechar o site Megaupload. Kim Schmitz, o fundador da empresa, mais três executivos foram presos preventivamente no dia 20 janeiro na capital da Nova Zelândia, Auckland, onde vivem, e aguardam a tramitação de seus processos de extradição nos Estados Unidos. São acusados de praticar pirataria.

Ultrapassados

Por trás de tais leis existe um conjunto de empresas que tentam forçar uma “lógica do século 20”, que as beneficia. “Se um jovem tem 3 mil músicas no pen drive, é porque ele pode baixá-las. A indústria fonográfica faz um cálculo errôneo de que ‘3 mil multiplicado por uma certa quantia de dólares é o lucro que ela teria’. Se ele tivesse que pagar, ele não iria baixar 3 mil músicas”, explica Marcelo Branco.

Dessa forma, a “indústria do copyright”, como a associação dos grandes estúdios de cinema, a indústria fonográfica, além da Adobe, Apple e Microsoft defendem uma legislação de acumulação de capital levada a cabo no século 20. Como lembra Marcelo Branco, até então havia um criador, o músico, o compositor ou um desenvolvedor de software, que estavam ligados a todo um processo fabril-industrial e que prensava fisicamente o bem cultural, o vinil, o CD, o livro. E essa produção era extremamente cara, e depois ainda havia a distribuição.

O criador e o varejo, as duas pontas da cadeia produtiva do modelo anterior não eram os beneficiários, e sim os intermediários, que tinham a tecnologia para fazer a cópia e o monopólio da distribuição. “Mas no cenário da internet não existe mais o processo fabril. O produto intelectual, seja um livro de poesia ou uma música não tem mais essa intermediação e se estabelece uma relação direta entre o produtor intelectual com o público e a internet como passou a ser um obstáculo no modelo de acumulação dessas empresas”, assevera Marcelo Branco.

Prática

Com a aprovação dessas leis no Congresso estadunidense, a cultura da comunicação compartilhada sofreria um retrocesso. “Se eu publicar um conteúdo do G1(agência de notícias) no Facebook, protegido pelo copyright, eu e essa rede social seremos os responsáveis. No caso do Wikipedia, vários links apontam para outros conteúdos com copyright, mas em vez de prejudicar, beneficiam essas pessoas, pois divulgam seu trabalho”, afirma Marcelo Branco, da Associação Software Livre.org.

Fato é que com o endurecimento da legislação por lá, nenhuma empresa sediada nos Estados Unidos poderá permitir o acesso a um número de IP (protocolo de internet) ou a um domínio de um site acusado de “roubar” informações protegidas de cidadãos ou corporações estadunidenses, sob pena de ser considerado cúmplice.

No caso de sites que abrigam conteúdo protegido por copyright, o projeto de lei exige que, em cinco dias, todas as referências a eles sejam apagadas no Google e o Yahoo, e também nos links do Wikipedia. Os provedores de internet, email, blogs, e redes sociais serão forçados a espionar todo conteúdo publicado por seus usuários em busca de material não autorizado e, por ventura, bloqueá-los.

Nessa mesma linha, como reforça Sérgio Amadeu, se para conter o avanço do software livre em algum lugar do mundo, um laranja dessas grandes empresas acusa o GNU/Linux de violar algumas patentes, o Source Forge (repositório de códigos-fonte) poderá bloquear o acesso às páginas do projeto e o Google deixará de inserir a palavra Linux em suas buscas, a Wikipedia deverá apagar os links que remetam para os sites vinculados ao sistema operacional livre, e os bancos deverão bloquear os recursos financeiros e suspender a conta da comunidade Linux. O destaque é que o Sopa avança no campo do vigilantismo ao responsabilizar o intermediário pelo conteúdo de seu usuário. “O papel do provedor, seja Terra, é justamente garantir a privacidade de informação de seus clientes e não o contrário. A Lei do Azeredo (apelidada de “AI-5 digital”) era isso, o papel de polícia era transferido ao provedor, de vigiar seus clientes e tirar do ar o site”, critica Marcelo Branco.

Na Europa, a Lei Sinde, na Espanha e a Hadopi, na França, já são uma realidade que fere os direitos civis. A Hadopi obriga os provedores a desconectar a pessoa que compartilha arquivos sem autorização e a violou três vezes. A Lei Sinde permite ao governo espanhol até mesmo atuar contra provedores de conteúdo e acesso.

Geopolítica

Para Ronado Lemos, diretor do Centro de Tecnologia e Sociedade da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro, o Sopa e o Pipa vão muito além das leis Sinde e Hadopi, pois afetam a própria estrutura da rede e promove a “balcanização” da rede. “Se outros países seguem na mesma linha, a internet deixa de ser uma rede internacional e se torna uma rede diferente em cada país. Além disso, a aprovação do Sopa é um exercício de poder geopolítico dos EUA, para proteger uma indústria específica: Hollywood e as gravadoras. Nesse sentido, um fator que pode evitar que o modelo se espalhe é que a adoção de leis semelhantes ao Sopa por outros países seria contrária ao seu próprio interesse e serviria apenas para fortalecer o desbalanço de poder com relação aos EUA”, explica Lemos, que também é apresentador do programa de tendências em tecnologia digital Mod MTV, e diretor do Creative Commons Brasil.

Assim, essas leis, além de afetar profundamente a liberdade de expressão na internet, dado que os Estados Unidos concentram a maior parte da infraestrutura da rede e quase todos os serviços e sites utilizados massivamente ao redor do mundo, como Youtube, Facebook, WordPress, Google, Twitter, uma legislação de tal tipo provocará um impacto muito mais abrangente. “A questão principal é que se o Sopa for aprovado, a geopolítica da rede muda. O poder sobre a internet passa a ficar concentrado nos EUA, que podem decidir unilateralmente pela retirada de sites do ar, sem haver sequer um controle prévio pelo judiciário”, reforça Lemos.

Uma reação poderá ser, segundo o diretor do Creative Commons Brasil, o surgimento de redes dentro da rede, criadas por hackers para fugir do controle e dos novos protocolos e infraestruturas mais difíceis de controlar. “O problema é que, com isso, a rede começa a se desintegrar e iniciativas legítimas de outros países como o Brasil saem prejudicadas, com um fluxo de usuários partindo para essas redes informais. É o tipo de medida que não resolve o problema e, ao contrário, piora a questão ao desvirtuar a ideia do que é a internet”, explica Ronaldo Lemos.

Especificamente sobre essa concentração da infraestrutura na internet nos Estados Unidos, o governo brasileiro defende nas Cúpulas de Sociedade da Informação (2003, em Genebra e 2005, em Túnis) que o servidor-raiz (que distribui os endereços na internet e está no estado da Califórnia) seja alocado em um país neutro e sob a legislação internacional e que a governança da internet não seja mais submetida ao Departamento de Comércio Americano.

Comércio

Também do ponto de vista comercial, tal proposta de legislação é carregada de malefícios que concentram o poder econômico. “Nos últimos 15 anos houve uma explosão de inovação e novos serviços, do Youtube ao Facebook. Isso foi possível porque a lei dos Estados Unidos dava a segurança e proteção necessária ao empreendedor. Se o Sopa for aprovado, a inovação sai penalizada: qualquer nova iniciativa na rede vai precisar da autorização permanente da indústria pré-internet, especialmente de Hollywood e das gravadoras, hoje os maiores defensores do Sopa. E nesse sentido, o Sopa não traz nenhum benefício ao usuário, apenas à indústria”, pontua Ronaldo Lemos.

Se aprovada, a competição ficará reduzida e países como o Brasil, que são justamente o alvo do projeto, terão seus empreendedores impedidos de criarem um novo site voltado para o mercado global e podem ser penalizados pelos EUA e terem seu site removido do ar sem aviso prévio. “O Sopa cria um novo tipo de barreira comercial, voltada para a internet, discriminando sites localizados fora dos EUA”, conclui Lemos.

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