quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Infraero: a privatização em marcha

Por Paulo Kliass, no sítio Carta Maior:

As surpresas desconfortáveis que a História nos apresenta, depois da chegada de governos supostamente mais à esquerda ao poder, são bem antigas. Dentre os muitos casos conhecidos, há dois que podemos considerar como paradigmáticos e que passaram a ser referência para esse tipo de dificuldade política, derivada de um abandono dos programas para os quais os governos haviam sido eleitos. Refiro-me às vitórias encabeçadas pelos socialistas na França com François Mitterrand e na Espanha com Felipe Gonzalez, lá no longínquo início da década de 80 do século e do milênio passados.



As vitórias eleitorais de Margaret Thatcher na Inglaterra e Reagan nos Estados Unidos, ocorridas pouco tempo antes, haviam aberto a possibilidade de se implementar, como política de governo desses países, as idéias ultra-liberais em termos de política econômica. Forjou-se o que passou a ser conhecido como Consenso de Washington – na verdade, um programa coordenado daquilo que hoje convencionou-se chamar de neoliberalismo.

Um dos elementos mais simbólicos dessa tentativa de se fazer “tábula rasa” da experiência do “Estado do Bem Estar Social” e dos tímidos ensaios de políticas keynesianas foi o tratamento conferido à presença do Estado na economia – seja pela via direta de empresas públicas, seja pela via dos mecanismos de regulamentação e intervenção indireta. Recuperar a ortodoxia “autenticamente liberal” significava, portanto, desconstruir em termos políticos e ideológicos todo e qualquer resquício dessa opção maculadora dos princípios do “laissez faire, laissez passer”. De acordo com essa visão radical do liberalismo, o Estado encarnava todos os males de que as sociedades padeciam. Era preciso acabar com toda essa estrutura e todo esse instrumental que foram sendo desenhados e construídos a partir da Grande Depressão de 29 e, principalmente, depois do final da Segunda Guerra Mundial.

A opção de política pública que melhor expressava essa reviravolta liberalizante consistia na venda das empresas públicas ou na concessão de tais alternativas de empreendimento ao setor privado. Em uma única palavra: a privatização. O recurso a esse ou aquele argumento variava de acordo com o contexto do país ou com a conjuntura vivida. Ineficiência da ação pública face à suposta competência do setor privado. Necessidade de reduzir as dívidas públicas, o que serias viabilizado pelos montantes obtidos com as vendas do patrimônio estatal. Necessidade de conferir a tais setores da economia a vigência plena das regras da “liberdade de mercado”. Opção por implementar políticas públicas que satisfizessem aos interesses de importantes grupos do capital privado. Enfim, o que importava era assegurar a transferência ao capital privado a propriedade ou a gestão de setores ou empresas que antes eram de natureza pública.

Corta! Pano rápido! Pulemos a longa seqüência das cenas relativas aos processos de privatização na grande maioria dos países do Terceiro Mundo ao longo dos anos 80 e 90, as chamadas décadas perdidas. Saltemos os capítulos a respeito da implementação de política econômica liberal e ortodoxa durante boa parte dos mandatos de Lula. Registremos a crise do capital financeiro internacional a partir de 2008 e o questionamento dos fundamentos ideológicos da devastação neoliberal, opção até então colocada em marcha pelos quatro cantos do planeta. Evitemos comentar a implementação das medidas ortodoxas, inclusive de privatização de empresas públicas, pelo governo socialista de Papandreou na Grécia de hoje. E chegamos, enfim, à posse de Dilma em janeiro passado.

Havia uma grande expectativa criada logo nos primeiros meses de seu governo, quando a Presidenta passou a dar sinais de que faria uma opção de política econômica menos comprometida com os rigores da ortodoxia vigente até então. Mas foi necessário que eclodisse o aprofundamento da crise financeira no espaço europeu para que o COPOM, finalmente, decidisse pela redução de tímidos 0,5% na Taxa SELIC, depois de uma seqüência de altas em 5 reuniões consecutivas desde o início do novo governo. Aguarda-se com ansiedade a confirmação da tendência de redução substantiva da taxa na próxima reunião, a realizar-se em 18 e 19 de outubro.

Mas todo mundo sabe que nem só de política monetária (taxa de juros) vive a política econômica. E um de seus aspectos relevantes refere-se às opções que o governante realiza para a consecução dos preceitos constitucionais, para fazer valer os direitos dos cidadãos e para alcançar as metas de melhoria da qualidade de vida.

Chama a atenção a persistência em se manter no bojo da agenda governamental projetos de privatização de atividades cuja natureza é, inquestionavelmente, pública. Já não se trata mais da venda explícita das grandes estatais, como ocorreu nas décadas de 80 e 90, quando empresas estratégicas e com elevado potencial foram transferidas ao setor privado a preços irrisórios. Não, agora o jogo é mais sutil. Dada a impossibilidade política de criar condições para privatizar conglomerados como Petrobrás ou Banco do Brasil, o setor privado orienta a sua ação com o intuito de convencer os governantes a respeito de uma agenda de privatização que promova menos estardalhaço. Como se estivessem em um compasso de espera, em uma postura defensiva, esperando passar essa fase de crítica generalizada aos preceitos do neoliberalismo.

Há três exemplos dessa nova manifestação do processo privatizante que merecem nossa atenção. Isso porque operam em setores que têm grande importância estratégica para o País e que apresentam potencial de rentabilidade também significativo. Refiro-me aos seguintes sistemas; i) os aeroportos; ii) as rodovias federais ; e iii) o fornecimento de acesso à rede de internet. Todos eles apresentam em comum o fato de serem serviços públicos, cuja responsabilidade de assegurar o fornecimento à população cabe, em última instância, ao Estado brasileiro. Infelizmente, por problemas de espaço, vou tratar aqui apenas do primeiro deles.

O “lobby” para transferir as atividades aeroportuárias ao setor privado é antigo. Para tanto, contam com a irresponsável política de redução dos investimentos da Infraero provocada pelos cortes orçamentários há décadas. Assim, a cada ano, nos períodos de maior afluência aos aeroportos, a grande imprensa já tem pautado o destaque de cobertura, na expectativa do novo “apagão aéreo” e na incansável tentativa de responsabilizar a natureza pública da gestão como a única responsável dos inúmeros problemas (e eles são reais! - é necessário reconhecer) enfrentados nos aeroportos. Há vários anos que se observa o movimento de “vai e vem”, oscilando entre ceder a operação dos aeroportos ao setor privado ou mantê-la na órbita do governo federal.

Mas eis que se apresenta a grande oportunidade que não poderia ser perdida! A Copa do Mundo de 2014. Esse é o grande momento para pressionar o governo e conseguir a liberação tão desejada. E o argumento que mais pesa é o de que não podemos correr o risco de “passar vergonha” durante o mês em que as principais seleções de futebol do planeta aqui se apresentarão. E vêm à tona, mais uma vez, os antigos projetos que já estavam em discussão interna nos gabinetes. O governo decidiu por ceder ao setor privado a operação dos aeroportos de Brasília (DF), Guarulhos (SP) e Viracopos (SP). Além disso, estariam em fase avançada estudos para realizar o mesmo, um pouco mais à frente, com os aeroportos de Galeão (RJ) e Confins (MG). [1]

O modelo adotado foi a constituição de uma empresa responsável pelas atividades, no formato que se convencionou classificar como Sociedade de Propósito Específico (SPE). A composição da empresa que ganhar a licitação permitirá que o capital privado fique com 51% da propriedade e os 49% restantes poderão ficar com a própria Infraero. Nada é mencionado a respeito da origem dos vultosos recursos necessários para as obras de infra-estrutura e equipamentos. Provavelmente, virão de fonte pública – por exemplo, o BNDES – com linhas de crédito a juros altamente subsidiados. No que se refere às taxas a serem cobradas pelos serviços oferecidos tampouco se fala, apesar delas serem uma das principais fontes de receita da atividade. Cabe lembrar aqui a elevação expressiva das tarifas cobradas pelas empresas de energia elétrica e telefonia, fenômeno que ocorreu logo após a privatização da época de Fernando Henrique Cardoso.

Gestão aeroportuária é atribuição altamente estratégica e com um conteúdo de segurança nacional que não deve ser negligenciado. Ao invés de optar pelo caminho da melhoria do padrão gerencial existente (o que é uma necessidade urgente!), o governo rendeu-se mais uma vez ao discurso viesado de que a gestão privada é sempre mais eficiente do que a gestão pública. E ainda abre o perigoso precedente, tal como consta no edital, de permitir a participação de empresas estrangeiras na gestão aeroportuária. Uma loucura!

Outro detalhe interessante é que as experiências privatizantes vão começar justamente pelos aeroportos de maior potencial de rentabilidade e lucratividade. Com certeza, não se trata de mera coincidência. São aqueles que apresentam a maior movimentação de passageiros e aeronaves, todos localizados na região de maior desenvolvimento econômico e na capital do País. Parece repetir-se a conhecida estória de ceder ao capital privado o filé mignon, enquanto o setor público fica com a carne de pescoço. Ou seja, permanece encarregado pela operação dos aeroportos de menor movimento de aeronaves/passageiros e menor capacidade de arrecadação.

Os números relativos aos 3 aeroportos a serem privatizados refletem bem a realidade do que vai ser subtraído do setor público. Eles são responsáveis por 30% do total dos passageiros, 57% do total das cargas e 19% das aeronaves em todo o País. Com isso, fica evidente que a Infraero vai perder as fatias mais importantes de sua fonte de receitas, pois os demais 63 aeroportos apresentam baixo faturamento, que tem como principal fonte as taxas aeroportuárias. Se a administração aeroportuária é um setor assim tão interessante e as empresas têm mesmo essa preocupação com sua função social, por que não constam do pacote aeroportos como os de Altamira (PA), Tefé (AM) ou Cruzeiro do Sul (AC)? Afinal, trata-se de cidades importantes, em região de grande dificuldade de acesso e transporte, onde a aviação cumpre papel fundamental.

O governo ensaia fugir da polêmica, argumentando que não se trata de “privatização” e sim de “concessão”. Ora, a concessão é uma das inúmeras formas de privatização! Não se está vendendo o patrimônio do aeroporto, mas cedendo por prazos que - imagina-se - serão bastante generosos para os que pretendam administrá-los. É mais uma tentativa da tal parceria-público-privada (PPP), onde o Estado entra com todos os custos e riscos, cabendo ao capital privado usufruir das benesses da lucratividade obtida com a prestação de um serviço público.

Outro argumento sempre apresentado é a falta de recursos públicos para fazer as obras de modernização e os investimentos tão necessários nos aeroportos. Ora, mas onde o grupo privado que vier a vencer a licitação vai buscar empréstimos para essa tarefa? Com toda a certeza, junto ao BNDES, ou seja, fundos públicos a juros subsidiados, com a conta sendo paga pelo conjunto da sociedade. Nesse caso, se o dinheiro está mesmo disponível, a própria Infraero poderia ser a beneficiária desse crédito em condições privilegiadas.

O edital está em regime de audiência pública até o final do mês de outubro [2]. Assim, em princípio, existe o espaço para crítica e aperfeiçoamento do modelo. É necessário ampliar o debate e informar a população a respeito. Aos partidos políticos, às entidades da sociedade civil, ao movimento sindical e demais organizações que não concordam com tal proposta, cabe a manifestação e apresentação de alternativas.

Notas

1- Pouca gente ficou sabendo, mas o primeiro aeroporto da Infraero já foi privatizado em agosto recente, o de São Gonçalo do Amarante (RN), a 40 km de Natal. Trata-se da menor distância em direção ao continente europeu.

(2) Ver: http://www2.anac.gov.br/transparencia/audienciasPublicasEmAndamento.asp

2 comentários:

Anônimo disse...

deprimente ver a privatização dos aeroportos. Não esperava isso.

Pior ainda foi ver a Veja com a coluna de Antonio Nunes mitificando a figura de FHC por conta da medida escolhida por Dilma.

Sou totalmente contra, e sinceramente estou assustado com a escolha de Dilma: como vamos privatizar por 20/30 anos os areportos?

Espero que a decada de 90 do desmantelamento do estado não retorne. Em tempo de crise o governo ainda teima superá-la com medidas neoliberais. Deprimente.

Regina disse...

Não vejo com bons olhos a realização da Copa e dos JO no Brasil. Temos coisas mais importantes para resolver do que ficar correndo atrás de estádios e que tais. O retorno disso tudo é imenso para a FIFA e seus consortes. Para o país tenho minhas dúvidas. E aí mora o perigo. Dado os prazos existentes, o governo fica sem muita flexibilidade. e acaba por socorrer-se na previsão constitucional art.21, XII,c.
No final das contas não sei se não sobrará para a presidenta.