terça-feira, 6 de setembro de 2011

Operário tem perna amputada

Por Leonardo Severo, de Campo Grande/MS:

Saturnino Vogado tinha 24 anos quando deu o título da JBS Friboi de Futebol em 2002 ao time da Matança, que venceu o da Inspeção em Campo Grande. Um drible curto e o chute certeiro, no cantinho, não deram nenhuma chance para o goleiro. “Pode perguntar para qualquer um, não tinha defesa”, relata Saturnino, entre orgulhoso e pensativo, enquanto lhe escapa um breve sorriso do olhar triste.


Era o dia 12 de novembro de 2002. Havia se passado poucos meses daquele feito, quando o lateral torcedor do São Paulo, que prometia jogar “até de bengala”, foi obrigado a abandonar o esporte após ter a perna amputada em um acidente de trabalho no frigorífico da capital sul-matogrossense.

Inexperiente, com muito poucos meses na Friboi, Saturnino foi colocado para limpar e lubrificar os trilhos próximos das nóreas, as correias que transportam o gado pendurado para ser fatiado na linha de produção do frigorífico. Como o goleiro adversário, o craque não teve chance: “escorreguei nas ferragens com graxa e a perna ficou travada numa chapinha, não tinha escapatória”.

Estava no final do expediente, eram por volta de 15 horas e 45 minutos. Ele havia começado a trabalhar as seis da manhã. A máquina não devia estar ligada; mas estava e começou a puxar. “Levou a minha perna e o meu corpo para o meio das ferragens. Eu gritei para o meu amigo Jeferson, mas ele estava mais nervoso que eu, ficou paralisado. Os supervisores não estavam acompanhando o nosso trabalho. Nós não sabíamos como fazer aquilo parar. Fraturou meu fêmur, esmagou o joelho, quase me partiu ao meio...”

Para não ter de pagar a indenização pela irresponsável exposição do funcionário e fugir das suas obrigações com sua incapacitação permanente, a empresa fez de tudo e mais um pouco, denuncia Saturnino. “Inventaram que eu tinha feito curso, presenciado palestras, que estava plenamente qualificado para operar a máquina. Disseram até que eu era mecânico, embora não passasse de auxiliar de frigorífico”.

Além disso, conta, “disseram para a imprensa que o acidente havia sido com um caminhão, no embarque, e até tentaram barrar a entrada dos bombeiros que vieram me socorrer. Buscavam encobrir a verdade, não queriam que vissem o que realmente aconteceu”.

Ainda muito novo, desconhecedor do Sindicato e dos seus direitos, Saturnino acabou sendo ludibriado pela JBS Friboi e pelo canto da sereia da “responsabilidade social”. Inicialmente “ajudado” no transporte durante dois anos, nos “leva e traz ao hospital”, baixou a guarda e acabou sendo completamente driblado e goleado na ação judicial que o condenou como culpado. Tudo o que aconteceu passou a ser de sua única responsabilidade. Foi assim que ficou sem um centavo para fazer frente à adversidade da vida de trabalhador pobre e mutilado, morador da periferia.

“Não ganhei nenhuma indenização da JBS Friboi, nada, nadinha. Só de Deus: a vida, uma segunda chance de viver. Até para me aposentar tive que entrar na Justiça. Saiu recém agora, no mês de agosto”, nos relata em sua casa, ao lado do pai, da mulher e de um dos filhos.

Ninguém está a salvo de uma tragédia dessas, diz, olhando para as muletas e para a prótese. Por isso, acredita, “as empresas deviam investir em instrução e qualificação para este tipo de serviço mais perigoso, que foi justamente o que não aconteceu comigo. Também devia ter um tipo de seguro”.

Além da amputação da perna direita, Saturnino sofreu um corte nas costas e um enorme ferimento, que o rasgou da virilha até o ânus, expondo suas vísceras, o que lhe obrigou a fazer uma colostomia. (Por meio de uma bolsa se faz a exteriorização do intestino grosso para a eliminação de gases ou fezes).

E o tempo passou. Devido à “enrolação” do SUS (Sistema Único de Saúde) em Campo Grande e à completa falta de solidariedade da Friboi, a operação de reversão da colostomia não foi feita após os três meses do acidente, conforme inicialmente os médicos haviam apontado, mas somente cinco anos depois. Foram quase sessenta meses, longos e intermináveis.

“O SUS estava sempre cheio e a empresa vivia inventando desculpas, enrolando e dizendo que não podia pagar pela cirurgia. Para eu conseguir fazer a reversão tive de ir de bicicleta, pedalando cerca de quinze quilômetros com a minha prótese e a bolsa de colostomia. Foi assim que eu consegui”, relata.
Pai de dois filhos, “se virando” para sobreviver com o salário mínimo que ganha como auxílio-doença, Saturnino fez uma adaptação numa moto para sair à busca de trabalho. Ele pinta portas e portões para tentar complementar o magérrimo orçamento.

No próximo dia 12 de setembro, após um longo processo judicial iniciado em 2006, Saturnino deixará de ser funcionário da JBS Friboi, que só lhe pagou mesmo os quinze primeiros dias depois do acidente, conforme manda a lei. Não receberá mais da Previdência a merreca do auxílio-doença, mas o mínimo. De aposentado. Mutilado. Aos 32 anos.

Quanto aos dez bilhões de reais recebidos do BNDES pela JBS Friboi... Bom, isso é outra história.

2 comentários:

Luciano Mendonça disse...

O gado e o trabalhador, cada um com seu valor? Mas qual é o valor atribuído ao trabalhador?

Anônimo disse...

UM MINUTO DE SILÊNCIO.