terça-feira, 20 de setembro de 2011

Abril negociou com a ditadura

Veja, n. 95, 01-07-1970, pág.30 e 31
Por Luiz Gustavo Pacete, no Portal Imprensa:

Quando tinha 10 anos de idade, o garoto José Hamilton Ribeiro, nascido na pacata cidade paulista de Santa Rosa do Viterbo, sofria de uma enfermidade chamada “osteomielite”, inflamação nos ossos que o obrigava a contar com a ajuda de uma muleta para apoiar a perna esquerda. Mesmo com restrições, o menino não deixou de confirmar que sua vocação era a reportagem. “Caiu um avião perto da minha cidade. Imagina! Se hoje já é notícia, naquela época então nem se fala. A molecada saiu correndo para ver o acidente e eu não pensei duas vezes, mesmo com dificuldades fui ver o que tinha acontecido”.



Vinte e três anos depois, em 1968, aquela mesma perna esquerda que precisava da ajuda da muleta na infância foi ferida, quando Zé Hamilton – então repórter da revista Realidade – pisou em uma mina na cobertura da guerra do Vietnã. “Depois que tudo passou eu fiz essa associação. Me dei conta de que perdi aquela mesma perna que, quando criança, precisava apoiar com uma muleta. Isso é simbólico para mim, pois, com 10 anos de idade eu estava sendo intuitivamente um repórter, indo até o fato, observando, perguntando e depois contando da melhor maneira possível”. A história de Zé comprova o que o jornalista defende: ser repórter é vocação.

Hoje, com mais de 50 anos de profissão e como repórter especial do “Globo Rural”, Zé diz que não é um repórter que lida com técnica e economia no agronegócio, mas tem a função de retratar a “alma do homem do campo”. Tarefa que, muitas vezes, dá trabalho aos companheiros de equipe: “tem um câmera que trabalha comigo e até reclama de que eu me aproximo muito das fontes”.

É com vigor e lucidez que o “príncipe dos repórteres” – como é chamado por seus contemporâneos – falou à IMPRENSA, contando o que o motiva aos 50 anos de profissão. Comentou sobre a cobertura de guerras e conflitos nos dias atuais, lembrou dos tempos de revista Realidade e a atual situação do jornalismo brasileiro, que segundo ele, “não anima muito”.

O “príncipe dos repórteres”

Com mais de 50 anos de carreira, você ainda está em busca da grande reportagem?

Buscar a grande reportagem faz parte da minha rotina. Tenho uma lista das 10 que quero fazer e, quando realizo uma, acrescento outra. É uma lista permanente de reportagens especiais, que demoram por que demandam planejamento e condições do veículo para me mandar.

Tem algum tema ou entrevistado específico?

Eu ainda quero fazer uma reportagem sobre a Guerra do Paraguai e descobrir o que o Brasil ainda tem de resquícios deste importante momento da América do Sul.

Como se sente vendo uma matéria sua inscrita em um prêmio como o Emmy de TV no ano passado?

O departamento de jornalismo da TV Globo escolheu cinco reportagens para concorrer a esse prêmio e uma era minha. Para mim é muito gratificante o fato de a emissora ter escolhido, em um colégio de tantos jornalistas competentes uma matéria minha.

Cobertura de conflitos

Quando você olha hoje para as coberturas de guerras e conflitos lembra muito de sua época?

Hoje eu vejo que cada vez mais o jornalista de guerra está restrito. A tecnologia de comunicação de alguns exércitos está muito avançada, e mais: os grandes exércitos do mundo aprenderam que a atuação da imprensa em uma guerra é muito importante e, ao descobrirem isso, passaram a fazer uma vigilância rigorosa de tudo o que é publicado pelos jornalistas e correspondentes que acompanham as tropas.

Como você conviveu e convive com os traumas físicos e psicológicos?

Eu tive três medos no Vietnã depois do acidente com a perna: primeiro, o medo de morrer, e, quando eu fui levado para o hospital, eu vi que não morria mais; o segundo, era de tornar-me uma pessoa com uma deficiência física de tal gravidade, que não pudesse mais ganhar a vida com o meu trabalho e ser dependente; por último, o terceiro, era de ficar marcado como um repórter que fez somente a cobertura do Vietnã e nada mais. O primeiro passou assim que eu fui socorrido. O segundo, logo que cheguei ao hospital e na cadeira de roda comecei a entrevistar os médicos e enfermeiros para a matéria que eu estava fazendo. E o terceiro, eu resolvi aqui no Brasil, trabalhando e tendo reconhecimento da qualidade de meu trabalho.

A revista que marcou uma geração

Qual era a receita da revista Realidade? O que a transformou em um símbolo do jornalismo?

Ela foi se moldando em suas circunstâncias. O que deu à Realidade uma característica original foi o contexto histórico daquele momento. Parece que, na década de 1960 [a Realidade foi criada em 1966], tudo aconteceu no mundo: a pílula, o movimento hippie e o estudantil, a libertação da mulher, a luta dos americanos no Vietnã e muitos outros acontecimentos. E se você olhar muita das coisas que ainda acontecem no Brasil começaram naquele momento. Acredito que isso contribuiu para que a Realidade fosse bem sucedida, além do bom jornalismo, é claro.

Por qual motivo ela acabou?

O AI-5 [Ato Institucional] é de dezembro de 1968 e a revista começou a cair em janeiro de 1969. Quer dizer: a censura chegou até nós. Até então, a Editora Abril acreditava na Realidade e bancava toda essa rebeldia que nós tínhamos, mas, a partir do AI-5, ela recuou e passou a apostar em um novo produto chamado revista Veja, que vinha sendo cultivada internamente. A Editora Abril negociou com a ditadura para entregar a cabeça da Realidade em troca de abrir caminho para a Veja.

Pessoalmente, como foi lidar com o fim da revista?

Desde os 20 anos de idade eu estava na linha de frente da imprensa, seja por ter atuado na Folha de S.Paulo ou na Abril. Com este momento da censura, eu perdi espaço na grande imprensa. Se já era difícil fazer jornalismo, imagine ser jornalista investigativo na época da ditadura. À época, fui para o interior fazer reforma gráfica de jornal, implantar computadores. Como não podia mexer com conteúdo, fui trabalhar com a forma em Ribeirão Preto, Rio Preto e depois Campinas.

A atual situação do jornalismo

O jornalismo de hoje tem espaço para uma nova revista Realidade?

Eu acho que o brasileiro se acostuma rápido até com o que é ruim. Então, a pessoa está acostumada com o que é de baixa qualidade. Automaticamente, quando você oferece coisa boa, ele corre para ela. Nos dias de hoje, a Realidade só daria certo se você tivesse uma redação proporcional àquela que nós tínhamos, com qualidade, salário, condições de produção e de reportagem. Se ela desse certo, acredito que ainda conseguiria mudar o espectro da imprensa, assim como aconteceu nos Estados Unidos e Inglaterra. Se o primeiro mundo consegue fazer, a gente também deve aspirar.

Quando você olha hoje para o mercado editorial brasileiro tem algo que se aproxima do projeto da Realidade?

Na área da grande reportagem eu não estou muito entusiasmado, não. Eu acho que o momento do Brasil é do jornalismo de papel, jornal propriamente dito. Eu acho que é esse o grande momento da imprensa brasileira.

De que maneira você enxerga essa onda do jornalismo investigativo e das grandes reportagens?

A expressão repórter “super herói” é uma coisa enganosa por que o repórter que pensa que é um lobo solitário acaba sendo só um solitário. O repórter depende de estrutura tanto da redação como da empresa; então, é uma ilusão pensar na figura solitária do repórter.

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