domingo, 3 de abril de 2011

Padre Miguel D´Escoto defende a Líbia

Reproduzo entrevista concedida pelo padre sandinista Miguel D'Escoto à Telesur:

O governo líbio nomeou o ex-chanceler da Nicarágua Padre Miguel D’Escoto como representante do país norte-africano na Organização das Nações Unidas (ONU). Na decisão, anunciada na terça-feira, 29, por meio de uma carta enviada ao secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, o governo líbio destaca que D’Escoto está autorizado a falar em nome do povo líbio ante os órgãos das Nações Unidas. A decisão se deu logo após os Estados Unidos negarem visto de entrada no país a Ali Abdussalam, nomeado representante do governo líbio na ONU em 4 de março. Abaixo, a entrevista de D’Escoto à Telesur.

Está conosco Miguel d´Escoto Brockmann, representante da Líbia na ONU, e gostaríamos de lhe perguntar: uma vez conhecida a decisão de sua nomeação, por que aceitou esta indicação e o que significará este desafio?

A última parte desta pergunta... Significa que a Líbia, um país soberano e um Estado Membro da Organização das Nações Unidas, tem um representante, e que neste momento, tão tremendamente crítico em seu desenvolvimento como país soberano, se estava negando, contra todos os princípios, ter um representante.

Por que aceitei? Porque esta é uma situação intolerável, e como cristão, como revolucionário, compreendo perfeitamente que a solidariedade implica, inclusive, a disposição de colocar-se no caminho do perigo, a correr riscos e eu o estou fazendo, porque creio que é minha obrigação como cristão, como sandinista, como revolucionário, com respeito ao país irmão da Jamahiria Árabe Líbia Popular Socialista.

Senhor d´Escoto, em relação ao seu prestígio, a aceitação desta representação não lhe possibilitaria ser vítima de ataques e críticas?

Depende ante os olhos de quem. Ante os olhos dos que defendem o direito de uma minoria ditatorial, imperialista, isso não lhes vai cair bem. Porém ante os olhos daquela parte da opinião pública, que eu diria é a imensa maioria, e ante os olhos dos povos, que é o que a mim mais me interessa, isto se vê de outra forma...

Já estou recebendo retroalimentações das bases; inclusive acabo de receber uma mensagem de uma senhora que é da Nicarágua, está com seus 84 anos, e me manda dizer que é muito bom que tenha aceitado, porque o que está fazendo este país [os Estados Unidos], do qual ela agora é cidadã, lhe parece inaceitável. Aí tens em parte a resposta a tua pergunta... Depende a quem lhe pergunte, a reação irá variar. Se é uma pessoa com ética, moral, com princípios e com solidariedade vai gostar do que estou fazendo. Senão, não vai gostar.

Qual a sua leitura do fato de que neguem entrada a um diplomata na sede da ONU, como ocorreu com o representante da Líbia? Existem antecedentes a respeito?

Eu não sei, não conheço, não recordo neste momento nenhum antecedente. Porém, isso claramente põe em evidencia o que venho dizendo, inclusive o que disse ao retirar-me da presidência da Assembleia Geral da ONU há dois anos, quando disse que estas Nações Unidas já necessitam mais do que reformas! Que se converteu, não somente numa Organização totalmente sem função, incapaz de cumprir os objetivos pelos quais foi criada, mas que agora é pior... Não somente é disfuncional, é uma arma mortal em mãos do agressor imperialista e seus sequazes. Esta é a realidade, e isso traz consequências.

Agora, senhor d´Escoto, quanto a esta delegação, gostaríamos de aprofundar um pouco, qual é o próximo passo, quais são as características do processo e qual será o seu papel como tal?

Eu venho aqui para defender um povo inocente, que está sendo bombardeado pelo cinismo e a crueldade de uns países, uma ínfima minoria, os que pretende ser os donos do mundo. O que vamos estar impulsionando é o imediato cessar-fogo. E cessar-fogo, obviamente, não é o mesmo que se render; cessar-fogo implica que as duas partes têm que cessar-fogo. E isso implica também, que não se pode seguir armando os rebeldes... Isso é uma intromissão nos assuntos internos de um estado soberano! É contra as normas do Direito Internacional e contra a Carta da ONU; porém se está convertendo, de fato, na prática da ONU. Por isso tem que reinventada esta Organização.

Vamos estar impulsionando o imediato cessar-fogo e iniciar um processo de diálogo entre o governo e os rebeldes armados pela coalizão de estados europeus e Estados Unidos; de alguns estados europeus, não todos, porém quase todos. O desarme e o cessar fogo é para ambas as partes. E o embargo sobre a entrada de armas também deve deter o fluxo de armas dos Estados Unidos e dos países europeus, muitas das quais vêm através do Egito... Isso tem que ser detido de imediato!

Diante das declarações do presidente Obama, nas quais afirmou que não descarta armar aos rebeldes líbios. Pode se ver nisso uma violação dos princípios do Direito Internacional, o fato de imiscuir-se nos assuntos internos de outros países?

Obviamente é tudo isso que acabas dizer, porém é mais: uma solene hipocrisia! Porque estão, têm estado armando os rebeldes. Não é que não descartem num tempo futuro prover de armas os rebeldes, já estão fazendo! E não somente isso... estão intervindo no conflito entre rebeldes armados e os representantes legítimos do povo líbio; estão interferindo nesta luta. Já fizeram! Assim é que isso de que não descarta que no futuro o façam é pura hipocrisia e demagogia!

Precisamente, muitos estávamos esperançosos de que já não ia ser a característica desta administração; muitos estávamos dando o benefício da dúvida, porém agora estamos convencidos de que o império é o império e sua direção, sua política, não depende de quem seja presidente, porque aqui, neste país [encontra-se nos EUA], quem manda é o complexo industrial militar.

Qual a sua opinião sobre países como a Suécia, que mesmo sem ser parte da OTAN se somaram ao ataque contra a Líbia? O que se pode interpretar deste tipo de situação?

Para mim, isso resulta realmente triste porque me recordo como admirávamos a Suécia, nos tempos de Olof Palme. Na Nicarágua, foi uma espécie de herói para nós. Nosso principal Centro de Convenções leva seu nome, porém isso está muito distante do que a Suécia é hoje em dia... um país, também, desgraçadamente, lambe-botas do império. Realmente, me da muita pena ver o papel da Suécia de hoje.

Finalmente, senhor d´Escoto, segundo a experiência ao longo de sua carreira, que solução se poderia obter nesta situação? Quais os panoramas possíveis?

Esta Organização, eu o disse quando pela primeira vez assumi a presidência da Assembleia Geral, cheira a naftalina. Isso se sentia por qualquer um, em todas as partes... Cheira a formol, à morte! Conseguimos reativar um pouco, injetar um pouquinho de vida, e interesse, porém novamente caiu nesse estado de inação sobre o que tem que atuar, e deixando-se sempre controlar pelos interesses de um estado, que nem sequer podemos dizer que há pertencido às Nações Unidas.

Tem estado presente, porém não há pertencido, e me refiro aos Estados Unidos da América. Por que? Porque pertencer é algo mais que estar aqui representado no Conselho de Segurança e na Assembleia Geral. Pertencer é compartilhar ideais e princípios, e os Estados Unidos sempre tem lutado contra... Nunca aceitou o império do direito nas relações internacionais, sempre acreditou na lei da selva, quer dizer, no direito do mais forte.

Os Estados Unidos falam de democracia e se opõem a qualquer tentativa de democratizar esta instituição, que é a pior das ditaduras em todo o mundo. Por isso, logo estaremos também apresentando uma proposta sobre a reinvenção das Nações Unidas... Faz muitíssima falta! E todo este drama que estamos vivendo hoje, creio que mais do que tudo, está ajudando. Oxalá que assim seja, que se preste a uma boa leitura; que isto esteja ajudando as pessoas a se conscientizarem, que as Nações Unidas não podem seguir como estão hoje em dia; tem que ser como os princípios que estão implicitamente - e alguns explicitamente - expressos na Carta da ONU, inclusive a atual. E têm de ser respeitados!

Isso é o que acredito. E te agradeço muito a ti e a Telesur por haver me concedido esta entrevista.

* Tradução: Leonardo Severo.

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