sábado, 5 de junho de 2010

Telespectador e leitor não são estúpidos

Reproduzo artigo do professor Venício A. de Lima, publicado no sítio Carta Maior:

Robert Fisk, premiado jornalista inglês, correspondente no Oriente Médio do “The Independent”, em discurso no V Fórum Anual da emissora árabe de televisão Al Jazeera (publicado originalmente no site “Vi o Mundo” e também nesta Carta Maior) recoloca uma questão fundamental: como jornalistas incorporam acriticamente o que ele chama de “palavras do poder”, isto é, palavras e expressões deliberadamente criadas nos laboratórios do poder hegemônico para falsear a realidade que aparentam significar.

O tema, por óbvio, não é novo. No clássico “1984”, de George Orwell, a edição que estava sendo preparada do Dicionário da Novilíngua daria à língua a sua forma final não pela invenção de novas palavras, mas, sobretudo, pela destruição de palavras existentes.

Estudos sobre a difusão mundial da idéia de globalização no final do século XX, por exemplo, apontaram para a "violência simbólica" praticada pela introdução de palavras/expressões como flexibilização, governabilidade, nova economia, fragmentação, tolerância zero paralelamente à desqualificação sistemática de conceitos como capitalismo, classe social, dominação, exploração, desigualdade, dentre outros.

O famoso consultor do Partido Republicano e ex-assessor do presidente Bush, Frank I. Luntz, explicou publicamente, em 2003, a eficiência da substituição de palavras/expressões nas campanhas eleitorais e na sustentação da imagem positiva de governos, nos Estados Unidos: "aquecimento global" vira "mudança climática"; um "programa de desmatamento" vira "florestas sustentáveis"; "privatizar" vira "personalizar"; "invasão” vira "guerra contra o terrorismo" – e assim por diante.

Fisk e as palavras do poder

O que o assustador discurso de Fisk constata é como a relação de jornalistas com o poder mundial hegemônico está contaminada pela adoção acrítica de um vocabulário que serve de importante instrumento na construção de uma falsa visão do que ocorre hoje no mundo. Diz ele:

“No contexto Ocidental, a relação entre poder e mídia diz respeito a palavras — é sobre o uso de palavras. É sobre semântica. É sobre o emprego de frases e suas origens. E é sobre o mau uso da História e sobre nossa ignorância da História. Mais e mais, hoje em dia, nós jornalistas nos tornamos prisioneiros da linguagem do poder.”

Os exemplos que apresenta estão, sobretudo, relacionados com a política externa e as ações americana e inglesa no Oriente Médio e incluem expressões como processo de paz, a paz dos bravos, pico de violência, narrativas que competem ou a substituição, sem mais, de ocupação por disputa; de muro por barreira de segurança, de colonização por acampamentos ou postos.

Um estudo sobre a cobertura que a grande mídia nativa tem oferecido da política externa brasileira, sobretudo, das recentes tentativas, ao lado do governo turco, de mediar um acordo com o Irã sobre o enriquecimento de urânio para fins pacíficos, certamente revelaria um processo equivalente de adoção acrítica da narrativa do poder mundial hegemônico. Ou não seria isso exatamente o que faz, por exemplo, o jornal O Globo quando chama a atual política externa de "suicídio diplomático”?

Abreviando seu próprio fim

Fisk em seu discurso, todavia, traz uma reflexão fundamental. Diz ele: “O lado mais perigoso de nosso (jornalistas) uso da semântica de guerra, nosso uso das palavras do poder — embora não seja uma guerra, já que nós nos rendemos — é que isso nos isola de nossos telespectadores e leitores. Eles não são estúpidos. Eles entendem as palavras e, em muitos casos — temo — melhor que nós. Eles sabem que estamos afogando nosso vocabulário na linguagem dos generais e presidentes, das assim-chamadas elites, na arrogância dos experts do Brookings Institute, ou daqueles da Rand Corporation ou o que eu chamo de ‘tink thanks’.”

Talvez seja essa mais uma das razões a explicar a crise continuada da velha mídia, não só entre nós, mas no mundo: nossos telespectadores e leitores não são estúpidos.

A partidarização como estratégia de sobrevivência e a adoção acrítica da narrativa do poder estão acelerando a desconstrução de modelos superados de jornalismo e, inclusive, de modelos de negócios. Insistir neste caminho significa, para a grande mídia, abreviar seu próprio fim.

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