terça-feira, 4 de maio de 2010

O mais plebeu dos barões



No dia 14 de maio, às 19 horas, será lançado em São Paulo o Centro de Estudos da Mídia Alternativa “Barão de Itararé”. O nome é uma homenagem a um dos criadores da imprensa alternativa no país e o “pai do humorismo brasileiro”. Reproduzo abaixo a singela biografia redigida pelo jornalista e cartunista Gilberto Maringoni, publicada na Revista de História da Biblioteca Nacional:

- O que o senhor deseja?

- Trabalhar no seu jornal.

- E o que o senhor sabe fazer?

- Tudo, desde varrer o chão até dirigir o jornal, mesmo porque não há muita diferença.

Testemunhas desse diálogo, acontecido em meados de 1925 na redação de O Globo, no Rio de Janeiro, garantem que um dos protagonistas era o diretor da empresa, Irineu Marinho. As mesmas testemunhas dividem-se quanto à identidade de seu interlocutor. Algumas dizem tratar-se de um gaúcho baixo, um tanto rechonchudo, e muito abusado, chamado Apparício Fernando de Brinkerhoff Torelly. Outros juram ser aquele nada mais, nada menos que o ilustre fidalgo Barão de Itararé, o Brando, senhor feudal de Bangu-sur-Mer.

É possível que os primeiros tivessem mais razão, por um pequeno detalhe. O Barão de Itararé só chegaria ao mundo seis anos depois. Já Apparício nascera em 29 de janeiro de 1895, no Rio Grande do Sul, perto da fronteira com o Uruguai. A imprecisão do local tem sua razão de ser. Ele próprio conta: “Minha mãe queria ter o parto na fazenda do meu avô”, em Pueblo Vergara, no país vizinho. Ela e o marido saíram da cidade de Rio Grande de barco, até Artigas. “De lá até a fazenda viajaram de diligência. No meio do caminho, uma das rodas se partiu e houve um tremendo choque. Com todo aquele barulho e movimento, nada mais natural que eu me apressasse a sair, para ver o que se passava”.

O Barão só viria à luz bem mais tarde, no ano seguinte da Revolução de 1930. O nome foi dado em homenagem a um dos episódios mais dramáticos dos conflitos entre as tropas legalistas, de Washington Luís, e as forças leais a Getúlio Vargas, que subiam do Rio Grande do Sul em direção ao Rio de Janeiro. A cidadezinha de Itararé, no sul do estado de São Paulo, se desenhava como o palco da mais sangrenta batalha na disputa pelo poder. Rota natural para a Capital Federal, todas as suas casas foram evacuadas e tomadas pelas tropas da Força Pública paulista, no início de outubro de 1930. Os batalhões rebeldes, liderados pelo ex-comandante da Coluna Prestes, Miguel Costa, com maior efetivo, cercam o lugar por mais de duas semanas, à espera do melhor momento para atacar. No dia marcado para o confronto, chega a notícia de que Washington Luís fora deposto. A batalha de Itararé jamais aconteceu.

Pacifista e acompanhando a situação com humor, Apparício aproveita para se autoconceder o título de duque de Itararé, logo rebaixado para barão, “como prova de modéstia”. Assim, as duas personalidades passaram a conviver numa só pessoa, um dos mais criativos e irreverentes humoristas de que o Brasil tem notícia, um “herói que a Pátria chora em vida e há de sorrir incrédula quando o souber morto”, segundo suas próprias palavras.

Mas voltemos a fita. Quando trava aquele diálogo com Irineu Marinho, o jovem Apparício havia abandonado há pouco seus estudos de medicina na capital gaúcha – onde já se dedicava ao jornalismo – e se aventurava pela então sede da República. Para sua surpresa, é admitido em O Globo, no qual assina uma crônica por alguns meses, sob o pseudônimo de Apporelly.

Depois de passar por A Manhã, de Mario Rodrigues, Apparício junta dinheiro para lançar seu próprio jornal, em 13 de maio de 1926. O nome é uma óbvia gozação com o diário do pai do dramaturgo Nelson Rodrigues: A Manha. Sob o dístico “quem não chora não mama”, o Barão fez uma verdadeira revolução no jornalismo de humor brasileiro, superando as já gastas fórmulas das revistas O Malho, Careta e Fon-fon, lançadas na primeira década do século.

Enquanto as três praticavam um gênero de sátira política e de costumes bastante comportados – apesar de contarem com a colaboração de caricaturistas geniais, como J. Carlos, Raul Pederneiras e K. Lixto Cordeiro – Apporelly voltava-se contra o lado conservador da sociedade. Demolindo falsos mitos, tripudiando sobre a pompa de fraque e casaca do mundo político, Itararé praticou um gênero de humor que buscava laços com quem estava por baixo na sociedade.

A Manha, tablóide que alcançava quase todo o país, torna-se um sucesso editorial, num tempo em que não existiam pesquisas de opinião, estratégias de marketing ou verificação de circulação. Era “o único quinta-feirino que sai às sextas”, alardeava seu editor, fazendo troça das dificuldades de produzir praticamente sozinho o jornal inteiro. Graficamente, além de apresentar desenhos de Nássara, Mendez e Martiniano, A Manha publicava colagens e fotos retocadas de políticos e personalidades, numa molecagem editorial que os expunha ao ridículo a cada edição. A contrapartida era clara: ao contrário da maioria dos órgãos de imprensa, a folha de Apparício não recebia nenhum tipo de verba governamental.

As notícias primavam pelo absurdo. “A Manha propõe a regularização dos horários dos desastres da Central do Brasil”, “Foi admitido nos quadros de redatores desta folha o simpático senador Lauro Müller, general de divisão e profundo conhecedor das outras três operações de guerra – adição, multiplicação e subtração” e “O dia é hoje consagrado a Tiradentes, uma das grandes vítimas da política mineira” são exemplos de que os disparos verbais de seu editor quase não tinham limites.

Na edição de 5 de julho de 1930, ao comentar o manifesto de Luiz Carlos Prestes aderindo ao comunismo, A Manha assegurava que “as teorias explanadas pelo chefe revolucionário estão muito aquém das idéias vigorosas e radicais predicadas e praticadas pelo talentoso homem de letras que está à frente desta empresa”. O jornal classificava de "ridícula, simplesmente ridícula" a parte do manifesto que reivindicava a redução da jornada de trabalho para oito horas, perguntando “por que não pleiteia, como nosso chefe, a abolição completa do trabalho?”

A irreverência do Barão levou-o inúmeras vezes à cadeia, após a chegada de Getúlio ao poder. A primeira delas se deu em 2 de setembro de 1932 e durou apenas um dia. Mas inauguraria uma série de agressões que se repetiriam pelos anos seguintes. Se ainda não era um homem claramente de esquerda, o Barão, por essa época, já exibia sua forte ojeriza ao integralismo, movimento de extrema-direita que se espelhava no fascismo europeu.

Em outubro de 1934, o editor d’A Manha partia para uma nova empreitada. Juntamente com Aníbal Machado, Pedro Mota Lima e Osvaldo Costa, lança o Jornal do Povo. As tensões políticas se acentuavam. Em São Paulo, no dia 7, integralistas e comunistas haviam se enfrentado numa batalha campal na Praça da Sé. Quatro dias depois, vários militantes aqui radicados há anos são expulsos do país. No meio desse torvelinho, o novo diário sobrevive por dez dias. A publicação de uma série sobre a Revolta da Chibata (1910), dos marinheiros no Rio de Janeiro, foi o que bastou para o Barão ser seqüestrado e espancado por seis oficiais da Marinha. Após cuidar dos ferimentos, ele volta para A Manha. Coloca na porta a tabuleta: “Entre sem bater”.

Cada vez mais simpático ao Partido Comunista do Brasil (PCB), o “talentoso homem de letras” é preso novamente em dezembro de 1935. A acusação é ser fundador e militante da Aliança Nacional Libertadora (ANL), frente política liderada pelos comunistas. Agora a repressão é dura: são encarcerados, também, centenas de militantes e simpatizantes do PCB, como o escritor Graciliano Ramos, a cronista Eneida de Moraes e o jornalista Moacir Werneck de Castro, além de Luiz Carlos Prestes, sua esposa Olga Benario e boa parte da cúpula do partido.

O Barão foi interrogado pelo juiz Castro Nunes, da Vara Federal, na Polícia Central, que lhe perguntou a que atribuía sua prisão.

– Tenho pensado muito, excelência, e só posso atribuí-la ao cafezinho.

– Ao cafezinho?

– Vou explicar, excelência. Eu estava sentado num bar, na avenida Rio Branco, tomando meu oitavo cafezinho e pensando em minha mãe, que sempre me advertia contra o consumo excessivo do café. Nesse momento chegaram os policiais e me deram voz de prisão... Só pode ter sido isso, por eu ter desobedecido aos conselhos de mamãe.

Apesar do humor, a situação era séria. Vários presos foram barbaramente torturados. Olga Benario seria entregue aos nazistas. Graciliano recorda-se do Barão em numerosas passagens de seu Memórias do Cárcere como um companheiro afável e bem humorado. A Manha, por motivos evidentes, deixa de circular. Por um ano seu editor permanece encarcerado, sem culpa formal.

Quando volta às ruas, percebe que os tempos andam difíceis. No plano pessoal, Itararé havia perdido sua esposa, pouco antes da prisão, vítima de câncer. No mundo à sua volta, avançava o nazi-fascismo na Europa e o regime lançava as bases para um endurecimento. Mesmo assim, tentou relançar A Manha, que circula precariamente em 1937. No fim daquele ano, Getúlio dá novo golpe e instaura a ditadura do Estado Novo, com suspensão de direitos constitucionais, banimento dos partidos políticos e censura à imprensa. Para o nosso humorista, esse era apenas “o estado a que chegamos”.

Tentando sobreviver, mantém uma crônica regular no Diário de Notícias por seis anos. Evita provocar a direita enquanto dura a colaboração, voltando suas baterias para temas mais amenos. Algo mudara radicalmente no Barão desde que saíra da cadeia. Era sua aparência. Agora exibia uma vasta barba, precocemente grisalha, o que lhe dava ainda mais aparência de um nobre dos tempos da monarquia. Sua figura fica ainda mais popular.

Em abril de 1945, A Manha é relançada. Aproveitando-se do clima de mobilizações populares pelo fim do regime ditatorial, contando com a sociedade do político Arnon de Mello (pai de Fernando Collor de Mello) e a colaboração de intelectuais como José Lins do Rego, Marques Rebelo, Rubem Braga, Raymundo Magalhães Júnior e outros, o sucesso é ainda maior que na fase anterior. Quem escrevia e editava a maior parte das matérias, além de fazer a direção de arte, era mesmo o ilustre fidalgo, que por seu talento, chegou a ser chamado de o "Bernard Shaw do Brasil", em referência ao dramaturgo inglês. “Seria mais lógico que se considerasse a Shaw como o Itararé da Inglaterra”, respondeu nossa ilustre figura.

Suas posições políticas o aproximam do PCB. Depois de participar ativamente da campanha presidencial do comunista Yedo Fiúza, em dezembro de 1945, o Barão candidata-se a vereador pelo Distrito Federal. Na ocasião, duas denúncias inquietavam a população: a constante falta d´água e as adulterações no leite. O slogan da campanha não poderia ser mais certeiro: “Mais água, mais leite, mas menos água no leite”. Ainda candidato, seu primeiro ato foi promover seus cabos eleitorais a sargentos. É eleito com relativa folga.

Na Câmara Municipal, o Barão caracteriza-se como um parlamentar combativo e espirituoso na defesa dos interesses da população pobre. Divide seu tempo entre o legislativo e a direção d´A Manha, o que significa uma jornada exaustiva. Mas sua carreira parlamentar dura pouco tempo. Influenciado pelos ventos da guerra fria, o Tribunal Superior Eleitoral suspende o registro do PCB, em maio de 1947. Sete meses depois, todos os parlamentares do partido são cassados, incluindo Itararé.

Nesse meio tempo, apesar da grande aceitação popular, seu jornal não ia bem das pernas. Sem capital e estrutura empresarial para garantir a regularidade, A Manha é novamente suspensa, em 1948. Mas o último nobre da República não desiste e logo vem com mais uma novidade. Chama seu antigo colaborador, o artista gráfico paraguaio Andres Guevara, para lançar o primeiro de seus Almanhaques, em 1949. Aproveitando o sucesso que faziam os almanaques populares com dicas, conselhos e curiosidades astrológicas, o Barão acrescenta à fórmula seu humor anárquico. Essa edição traz logo na abertura uma biografia da impoluta personalidade, cuja “vida pública é uma continuidade da privada”. Ali ficamos sabendo que Itararé, “cioso como ninguém da pureza de sua estirpe, é o único nobre do mundo que, pelo menos uma vez por mês, injeta, por via endovenosa, uma certa quantidade de azul de metileno, para manter inalterada a cor da nobreza do sangue”.

O que era para ser uma publicação semestral só voltou a circular por duas vezes, em 1955. Aos 60 anos, cansado, o Barão colabora por algum tempo na Última Hora, de Samuel Wainer. Quando vem o golpe de 1964, com a volta da repressão, cassações e prisões, Apparício vê repetir-se um filme já conhecido. “Esse mundo é redondo”, dizia ele, “mas está ficando chato”.

Nos últimos anos, Itararé torna-se um recluso em seu apartamento no bairro de Laranjeiras. Lê vorazmente e estuda matemática, biologia e eletrônica, paixões desde a juventude. Cercado de livros, vivia também rodeado de baratas, tratadas por ele como “companheiras”, por terem exercido tarefas importantes nos tempos de cadeia, levando amarrados nas costas papeizinhos com mensagens para seus colegas de cárcere. Com a saúde abalada e só – sua quarta mulher se suicidara anos antes e seus filhos não moravam com ele – Apparício Torelly morre em casa, aos 76 anos, em 27 de novembro de 1971. Era o fim do herói de dois séculos”, como se autodenominava, parodiando o revolucionário italiano Giuseppe Garibaldi (1807-1882), que lutara em seu país, no Brasil e Uruguai, conhecido como “o herói de dois mundos”.

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3 comentários:

Ministério da Saúde disse...

Caro blogueiro,

A vacina contra Influenza H1N1, vírus que já matou 1.632 brasileiros, está disponível nos postos de saúde pública de todo o Brasil para pessoas com maior risco de desenvolver a forma grave da doença. A vacina foi testada, é segura e mais de 300 milhões de pessoas já foram imunizadas com esta vacina no Hemisfério Norte. Sábado, 24, começa mais uma etapa da campanha, voltada agora para a vacinação de idosos com doenças crônicas. No entanto, a população das outras etapas - jovens de 20 a 29 anos, grávidas, crianças maiores de 6 meses a menores de 2 anos e doentes crônicos com menos de 60 anos - ainda podem procurar os postos para se vacinar.Para mais informações sobre como se tornar um parceiro, escreva para fernanda.scavacini@saude.gov.br
Atenciosamente,
Ministério da Saúde

GilsonSampaio disse...

Lamento pelo tema fora do tópico.

Vejam as duas matérias sobre Aids publicadas na fóia ditabranda e no estadão.
A fóia 'ataca' o governo federal na manchete: governo quer estimular pórtador de HIV ter filho
O estadão defende o governo paulista: Governo de SP lança programa de reprodução assistida para soropositivos
´É canalhice pra ninguém botar defeito
Direitos humano e liberdades de imprensa, só a que convém a eles.
Abs
GilsonSampaio
Opção pata checat
http://gilsonsampaio.blogspot.com

Anônimo disse...

A única maneira de os pais do Barão de Itararé terem ido de barco da cidade de Rio Grande a Artigas, no Uruguai, é com o barco em cima de uma carreta puxada por bois.