domingo, 7 de fevereiro de 2010

A Constituição ameaça a mídia?

Reproduzo artigo do professor Venício A. de Lima, publicado no Observatório da Imprensa:

Os leitores da edição de domingo, 17 de janeiro, do jornal O Estado de S.Paulo, encontraram na primeira página uma chamada – "Governo prepara novo ataque à mídia" – acima da dobra, seguida de um texto que dizia:

"Documento preparado sob coordenação do Planalto prega mais uma vez o `controle social´ dos meios de comunicação e a interferência nos conteúdos, informam Felipe Recondo e Marcelo de Moraes. O texto servirá de base para mais uma conferência, desta vez a da cultura, marcada para março. O documento propõe, ainda, maior intervenção em áreas como ciência e meio ambiente.

Em que consistiria esse "novo ataque à mídia"? A explicação estava na página 4, sob o título "Conferência de Cultura arma novo ataque à mídia”. A longa matéria aponta que o "ataque" do governo consta do documento-base da 2ª Conferência Nacional de Cultura que será realizada entre 11 e 14 de março próximos.

Não é preciso mencionar que se trata de documento a ser discutido em conferência que, como todas as outras, é apenas propositiva. Mas, vamos em frente. Qual é exatamente o "ataque"?

Na verdade, não é um "ataque". São vários. O primeiro, diz respeito à existência de monopólio nos meios de comunicação. Segundo o Estadão o "ataque" estaria contido na seguinte frase:

"O monopólio dos meios de comunicação (mídias) representa uma ameaça à democracia e aos direitos humanos, principalmente no Brasil, onde a televisão e o rádio são os equipamentos de produção e distribuição de bens simbólicos mais disseminados, e por isso cumprem função relevante na vida cultural."

O leitor atento, todavia, se lembrará do que está escrito na Constituição. Relembremos:

Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.

§ 5º – Os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio.


Situação curiosa

O segundo "ataque" refere-se à "regulamentação de artigos que obriguem emissoras de televisão a cumprir cotas de regionalização na produção e exibição de programas" (sic). A matéria cita o documento-base:

"Tão necessário quanto reatar o vínculo entre cultura e educação é integrar as políticas culturais e de comunicação. Nesse sentido, os fóruns de cultura e de comunicação devem unir-se na luta pela regulamentação dos artigos da Constituição Federal de 1988 relativos ao tema [grifo nosso]. Entre eles o que obriga as emissoras de rádio e televisão a adaptar sua programação ao princípio da regionalização da produção cultural, artística e jornalística, bem como o que estabelece a preferência que deve ser dada às finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas, à promoção da cultura nacional e regional e à produção independente (art. 221) [grifo nosso]."

O leitor atento poderá consultar a Constituição, mencionada no trecho citado do documento-base, e verificar que, de fato, está lá:

Art. 221. A produção e a programação das emissoras de rádio e televisão atenderão aos seguintes princípios:

I – preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas;

II – promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que objetive sua divulgação;

III – regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentuais estabelecidos em lei;

IV – respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família.


Outro "ataque" do governo estaria contido na observação: "As emissoras comerciais se organizam com base nas demandas do mercado, que são legítimas. Contudo, essas demandas não podem ser as únicas a dar o tom da comunicação social no País."

Ainda uma vez o leitor atento se lembrará de que a Constituição estabelece o "princípio da complementaridade" entre os sitemas privado, público e estatal de radiodifusão – prevendo, portanto, que critérios outros que não as demandas do mercado também possam dar "o tom da comunicação social no país". Está escrito na Constituição:

Art. 223. Compete ao Poder Executivo outorgar e renovar concessão, permissão e autorização para o serviço de radiodifusão sonora e de sons e imagens, observado o princípio da complementaridade dos sistemas privado, público e estatal.

A matéria reproduz ainda, separadamente, trechos que considera "polêmicos" no documento-base. Além dos três "ataques" já mencionados, inclui outro, sob o título "Controle social da mídia", que se refere especificamente às "TVs e rádios públicas".

Temos aqui a curiosa situação em que o "ataque" do governo, segundo o Estadão, se dá não em relação à radiodifusão comercial, mas à radiodifusão pública. Quem senão o público deve exercer controle sobre a radiodifusão pública?

Reprodução em cascata

A matéria do Estadão, por óbvio, repercutiu na segunda-feira (18/1) nos jornalões Folha de S.Paulo e O Globo. Ambos, "por coincidência", usaram praticamente o mesmo título do próprio Estadão: "Governo Federal prepara novo ataque à mídia" e "Texto de 2ª. Conferência Nacional da Cultura traz ataques à mídia", respectivamente.

Além disso, na mesma segunda-feira, o Estadão se apressou em repercutir a sua denúncia com a ANJ e a OAB, e, em nova matéria sob o título "OAB e ANJ vêem ataque à mídia pelo governo", os "ataques" do governo do dia anterior já se transformaram em ataques à liberdade de expressão. O representante da ANJ, no entanto, vai um pouco além. Diz ele:

"Nesse caso, assim como em outros relatados recentemente, trata-se de proposta antidemocrática e anticonstitucional, uma vez que a plena liberdade de expressão é um dos preceitos básicos da nossa Constituição. É condenável essa tentativa de dirigismo, de interferência no conteúdo dos meios de comunicação" (grifos nossos).

Quem ameaça quem?

Os "ataques" do governo à mídia, identificados pela matéria do Estadão no documento-base da 2ª Conferência Nacional de Cultura (que ainda sequer se realizou), repercutidos nos outros jornalões, referem-se à regulamentação de normas constitucionais, como é absolutamente simples de constatar.

O mesmo tipo de situação aconteceu em relação às propostas aprovadas na 1ª Conferência Nacional de Comunicação (Confecom) e às diretrizes do III Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH) - ver, neste Observatório, o artigo "A mídia contra a Constituição”. No último fim de semana, as revistas semanais foram unânimes em condenar o que consideram "controle da mídia" e "atropelamento da Constituição" pelo III PNDH.

Para surpresa geral, inclusive a revista CartaCapital embarcou nesta canoa em textos assinados por Mino Carta, Gilberto Nascimento e Walter Maierovitch.

Condena-se no III PNDH a "ação programática" que propõe “elaborar critérios de acompanhamento editorial a fim de criar um ranking nacional de veículos de comunicação comprometidos com os princípios de Direitos Humanos, assim como os que cometem violações”. E a recomendação correspondente: “Recomenda-se aos estados, Distrito Federal e municípios fomentar a criação e acessibilidade de Observatórios Sociais destinados a acompanhar a cobertura da mídia em Direitos Humanos."

Na verdade, essas propostas já se encontram nos dois PNDH anteriores, de 1996 e 2002 (cf. itens 57 e 100, respectivamente), e um ranking já é feito no âmbito da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, que instituiu, em 2002, a campanha "Quem financia a baixaria é contra a cidadania" a partir de deliberação da VII Conferencia Nacional dos Direitos Humanos.

A observação social da mídia, apesar de sua inquestionável relevância democrática, vem sendo desenvolvida, a duras penas, por uma rede de observatórios – da qual este Observatório da Imprensa é pioneiro – e por entidades como a ANDI, o Observatório do Direito à Comunicação e o Observatório Brasileiro de Mídia. Foi esse tipo de trabalho, aliás, que levou a uma ação judicial bem sucedida por iniciativa do Ministério Público de São Paulo em relação ao antigo programa de João Kleber, Tardes Quentes, na veiculado Rede TV!.

É de se perguntar, portanto, quem ameaça quem? É o governo – ou seria a sociedade civil que se reúne em conferências? – que ameaça a mídia ou é a mídia que considera alguns dispositivos da Constituição uma ameaça a seus interesses e ataca, como vem acontecendo nos últimos 21 anos, qualquer tentativa de sua regulamentação?

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