segunda-feira, 12 de maio de 2008

Os dilemas do presidente Lula

Apesar dos ventos favoráveis, não está dado que o segundo mandato de Lula será mais avançado do que o primeiro. O seu próprio início já indica que ele será extremamente contraditório e ambíguo. Isto deriva da própria postura conciliadora e pragmática do presidente Lula. Sem maior convicção de projeto, ele evita conflitos e insiste no lulinha paz e amor, que governa para todos. Apesar de reafirmar o seu compromisso com os “mais pobres, sem negar a minha origem social”, ele elege os usineiros como “heróis da nação” e elogia os lucros dos bancos. Como teoriza o cientista político Luis Werneck Vianna, Lula tenta construir um condomínio de classes, um governo de conciliação nacional.
Num extremo, mantém intocados os privilégios dos banqueiros – que neste ano voltaram a bater recordes de lucratividade – e incentiva as poderosas corporações e o agrobusiness. Na outra ponta, adota políticas sociais que beneficiam os setores mais excluídos da sociedade. Na prática, ele não enfrenta os interesses da burguesia, em especial do capital financeiro, e não promove reformas estruturais que reduzam a brutal desigualdade na distribuição de renda – na qual o país é campeão mundial. Como diz o teólogo Frei Betto, esta ausência de projeto só agrava as disparidades sociais. “Em 2006, o Bolsa Família doou R$ 15 bilhões para 11 milhões de famílias pobres. Já o ‘bolsa especulador’ deu R$ 150 bilhões para 20 mil famílias de credores da dívida pública. Não há futuro para um país que beneficia dessa maneira a camada mais rica”.

Os paradoxos do PAC

Expressão cabal desta contradição encontra-se no Plano de Aceleração do Crescimento (PAC), anunciado com toda pompa e circunstância no início do segundo mandado. Por um lado, ele dá sinais positivos ao reforçar a necessidade do papel indutor do estado, ao fixar metas de investimentos e ao planejar as prioridades – como em obras de saneamento e habitação. É melhor debater propostas de desenvolvimento do que ficar discutindo a estabilidade monetária, como no reinado neoliberal do ministro Antonio Palocci. Por outro lado, o PAC não enfrenta os verdadeiros gargalos do crescimento econômico nem fixa qualquer controle social sobre os investimentos, que podem servir apenas às poderosas empresas.
O tripé neoliberal da política macroeconômica – política monetária restritiva dos juros elevados, arrocho fiscal do superávit primário e libertinagem cambial – mais uma vez não foi tocado para alegria do capital especulativo. Num gesto de pura provocação, na mesma semana em que foi anunciado o PAC o Banco Central reduziu o ritmo da queda da taxa de juros. Lula falou em acelerar o crescimento e o BC pôs o pé no freio, revelando que manda, de fato, na economia. Se fosse mais ousado, o presidente teria demitido toda a direção do BC – uma fortaleza dos banqueiros. Este paradoxo, entre a retórica desenvolvimentista e a prática monetarista, pode inclusive empacar o PAC e torná-lo apenas uma peça publicitária.

Iniciativas contraditórias

Nesta mesma lógica contraditória, o segundo mandato combina medidas positivas com outras altamente negativas. Entre as positividades, Lula não esqueceu o seu passado operário e teve a coragem de vetar a nefasta Emenda-3 do projeto da Super-Receita. Este contrabando da bancada patronal, que foi batizado de Emenda da Rede Globo, reduziria a ação de fiscalização nas empresas e estimularia a precarização do trabalho e a figura da Pessoa Jurídica (PJ), sem vínculos empregatícios. Apesar da pressão da mídia, o presidente manteve seu veto e, para isto, contou com o apoio do grosso do sindicalismo. Ainda na área trabalhista, ele apresentou projeto reconhecendo as centrais sindicais, um fato inédito na nossa história.
Num outro gesto histórico, o governo reconheceu oficialmente os brutais crimes praticados pela ditadura militar. Também investiu na criação da rede pública de televisão, como contraponto às manipulações da mídia. Além disso, deu passos expressivos no combate à opressão de gênero – com a criação da Secretária das Mulheres, a adoção da Lei Maria da Penha e a ampliação da licença maternidade –, no enfrentamento dos preconceitos raciais e na adoção de políticas afirmativas para a juventude trabalhadora – como o ProUni, que já ofereceu 300 mil bolsas de estudos no ensino superior para os jovens de baixa renda.
Já no extremo oposto, o governo acaba de “privatizar” sete rodovias federais – mesmo que em condições melhores das que efetuadas por FHC –, e já concluiu seu controvertido projeto das fundações estatais, que acaba com a estabilidade no emprego dos servidores e entrega à iniciativa privada inúmeros equipamentos sociais. Sob o argumento da crise do petróleo, de seu papel nefasto ao meio ambiente e das vantagens comparativas do Brasil, o presidente se tornou o principal “mascate” do chamado biocombustível. Mas, para a alegria dos usineiros, até agora não criou mecanismos de proteção contra a perigosa concentração agrária, contra a crescente desnacionalização da agricultura ou de proteção ao trabalhador rural.

Alguns riscos iminentes

Além destas medidas negativas, ainda há espectros perigosos rondando os lares dos trabalhadores. Desde abril passado, o Fórum Nacional da Reforma da Previdência, uma instância tripartite, discute medidas de “ajuste” nesta área. As entidades patronais insistem no falso discurso do déficit previdenciário, fato que é desmentido pelas próprias contas do governo, que confirmam o superávit da seguridade e a sua melhoria constante devido ao crescimento econômico, que reduz a informalidade e reforça o caixa da previdência. A pressão é pelo aumento da idade mínima de aposentaria – alguns raivosos falam em 70 anos –, redução dos benefícios e pelo incentivo aos fundos privados de pensão. O governo finge-se de arbitro, acima dos interesses de classe, mas fala em mudanças para as próximas gerações, ou seja, para os nossos filhos.
Também continua o embate sobre a lei de greve no serviço público. O projeto apresentado pelo ministro Paulo Bernardo, seguidor de Palocci, foi retirado da pauta após intensa pressão do sindicalismo. Exigia quorum absurdo para decretar greve, instituía a figura do fura-greve e penalizava os sindicatos com altas multas. Agora, diante da pressão das entidades patronais, o governo fala novamente em desarquivar este nefasto projeto. No seu vácuo, o Poder Judiciário ajuizou um pacote que restringe o direito de greve no setor. Também não estão descartadas mudanças na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), taxada recentemente pelo presidente Lula de “antiquada”. Com diz o ditado popular, onde há fumaça, há fogo!

Problemas estruturais

Devido a esta política ambígua, na qual convivem medidas positivas e outras altamente negativas, graves problemas estruturais do país não são tocados. A economia dá sinais de crescimento e o presidente afirma viver num “céu de brigadeiro”. Mas as profundas injustiças não são enfrentadas. O desemprego continua elevado; a informalidade abarrota as cidades; a renda dos assalariados ainda é das mais baixas do mundo; a perversa estrutura agrária concentra 56% das terras agricultáveis nas mãos de 1% de latifundiários; as favelas amontoam de 20% da população nos centros urbanos; os serviços públicos de saúde, educação e outros são de péssima qualidade; e 28,8 milhões de trabalhadores estão excluídos da previdência social.
No outro extremo, a ditadura financeira, a grande vilã dos tempos modernos, continua auferindo lucros recordes. Os balanços do primeiro semestre indicam que o Bradesco alcançou lucro liquido de R$ 4,007 bilhões – novo recorde histórico, 27,9% superior ao obtido no passado. Já o Itaú superou seu concorrente no pódio dos especuladores, obtendo lucro liquido de R$ 4,016 bilhões, resultado 35,8% superior ao de 2006. A escandalosa lucratividade dos bancos, resultante das taxas de juros estratosféricas (segunda maior do mundo) e da criminosa cobrança de tarifas (que hoje cobrem todos os gastos com funcionários), reduz o crédito ao consumo interno, asfixia a produção e eleva a dívida pública interna. O governo, que festeja a redução da dívida externa, está atolado na imensa dívida interna, que já supera R$ 1,198 trilhões. A União é forçada a desembolsar cerca de R$ 150 bilhões ao ano para pagar os juros, beneficiando uma minoria de 20 mil famílias de rentistas em detrimento dos recursos para a infra-estrutura e os programas sociais.
Além da orgia financeira, o Brasil virou um paraíso das multinacionais. Segundo estudos da Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento (Unctad), o país já é o quinto melhor do mundo para os investidores estrangeiros. As poderosas corporações são atraídas pelo baixo custo da mão-de-obra, mercado abundante, carga tributária menor do que a das nações desenvolvidas e pela desregulamentação da economia. Até setembro último, as fusões e aquisições das empresas brasileiras movimentaram US$ 44 bilhões, segundo a consultoria Thomson. A “armada espanhola” abocanhou até bancos, lembrando a fase colonial. Este processo explica porque no ano passado as multinacionais bateram recordes na remessa de lucros ao exterior. A “febre do etanol” também seduz os estrangeiros, como o megaespeculador George Soros, que adquirem enormes extensões de terra num temido processo de desnacionalização do campo.

A opulência dos ricos

Irritado com as vaias na abertura do Pan e com a criação do “Cansei”, um movimento articulado por ricos empresários e notórios tucanos, o presidente Lula desabafou num comício recente: “Os que estão vaiando são os que mais deveriam estar me aplaudindo. Posso garantir que foram os que ganharam muito dinheiro no meu governo. Aliás, a parte mais pobre é que deveria estar zangada, porque ela teve menos do que eles tiveram. É só ver quanto ganharam os banqueiros e os empresários”. O emblemático discurso serve como uma penitência. Realmente, as camadas ricas da sociedade não têm do que reclamar do governo Lula.
Ao manter intocados os graves problemas estruturais do país, a elite burguesa concentra ainda mais renda e riqueza. Recente estudo da Boston Consulting revela que os bilionários “nativos” detêm mais da metade do PIB nacional. Ao todo, são 130 mil ricaços com ao menos US$ 1 milhão cada em investimentos. Mais ricos da América Latina, sua fortuna conjunta é estimada em US$ 573 bilhões – em 2005, era de US$ 541 bilhões. Entre 2000 e 2005, o Brasil saltou da 18ª para a 14ª posição no ranking das nações com maior número de ricaços no mundo. Não é para menos que o país atrai tantas marcas, butiques e condomínios de luxo. Como ironiza a colunista Mônica Bergamo, “se tem um setor que não está precisando do PAC é o do consumo de alto luxo. O país cresceu 3,7% em 2006, certo? Pois, o mercado de luxo explodiu e cresceu 32%. Se, em 2005, o faturamento das empresas deste ramo foi de US$ 2,9 bilhões, em 2006 ele saltou para US$ 3,9 bilhões. Em 2007, a estimativa é que fature US$ 4,3 bilhões”.
Diante desta enorme disparidade, não há programa Bolsa Família que reverta esta brutal concentração de renda e riqueza. Estudo do Instituto de Pesquisas em Economia Aplicada (IPEA) demonstra que, apesar dos programas sociais do governo Lula, a desigualdade se mantém intacta. “Apenas 10% da população continua se apropriando de 80% da renda nacional”, explica Gabriel Ulyssea, pesquisador do IPEA.

Projeto de desenvolvimento

Diante desta disjuntiva, em que ocorrem avanços em algumas áreas, mas persistem os graves problemas estruturais, torna-se vital garantir os compromissos da campanha eleitoral de 2006. Diferentemente do pleito em 2002, em que a ameaça do chamado “risco-Lula” de desestabilização da economia levou o candidato a assinar a “carta ao povo brasileiro” (também apelidada de “carta aos banqueiros”), na qual cedia às chantagens do capital financeiro, agora os seus compromissos são com as camadas populares. A radicalização da campanha no segundo turno forçou maior nitidez do projeto mudancista.
Nos comícios públicos, Lula garantiu que o seu segundo mandato teria “a obsessão do desenvolvimento”, criticou os que propõem a precarização do trabalho e outra contra reforma da previdência, condenou a privataria e reconheceu que não houve mudanças profundas na estrutura agrária. O programa de governo 2007-10 fez uma demarcação mais explícita com as teses neoliberais e estabeleceu seis compromissos: a) combate à exclusão social; b) desenvolvimento com distribuição de renda; c) educação massiva e de qualidade; d) ampliação da democracia; e) garantia de segurança publica; f) inserção soberana no mundo.
O desafio agora e viabilizar as promessas de campanha que garantiram sua reeleição. Neste sentido, urge romper com os entraves neoliberais ao crescimento econômico do país, única forma segura para a geração de emprego e renda. O tripé neoliberal dos juros elevados (política monetária), arrocho fiscal (superávit primário) e da libertinagem cambial, precisa ser superado. Do contrario, o próprio PAC corre o risco de empacar. Uma política ousada de crescimento não combina com a manutenção da diretoria ortodoxa do Banco Central, a principal fortaleza dos banqueiros. Alem das medidas para destravar o desenvolvimento, o segundo mandato também necessita enfrentar os gargalos estruturais do país.
A exemplo da campanha pelas reformas de base no governo João Goulart, que contagiou a sociedade nos anos 60, estão dadas as condições hoje para se deflagrar uma massiva e unitária mobilização por reformas democráticas. Seis delas adquirem urgência: a) reforma política, que aperfeiçoe o sistema eleitoral e o pluralismo partidário e garanta maior protagonismo aos setores populares; b) reforma agrária, que elimine de vez o latifúndio e garanta o acesso a terra de milhões de trabalhadores rurais; c) reforma urbana, que enfrente os dramas dos centros urbanos e garanta acesso aos serviços públicos de qualidade; d) reforma tributaria, que desonere os assalariados e os pequenos e médios proprietários e fixe a tributação progressiva sobre os detentores de riqueza e renda; e) reforma da educação, que garanta o acesso ao ensino completo para os filhos dos trabalhadores e permita, de fato, a igualdade de oportunidades; f) e democratização dos meios de comunicação, com o fim da ditadura midiático no país.

Pressão urgente

O governo Lula, que inicia seu segundo mandato, é uma experiência inédita na história do país. É fruto do acúmulo de força dos movimentos sociais e dos partidos de esquerda, com suas virtudes e seus defeitos. Em 1930, um operário negro disputou a presidência da República, o comunista Minervino Oliveira, mas não pode votar em si próprio porque estava preso. Em 1945, outro candidato de esquerda, o médico Yedo Fiúza, teve quase 10% dos votos, o que não impediu que o Partido Comunista do Brasil fosse colocado na ilegalidade dois anos depois e que seus 14 deputados e um senador fossem arbitrariamente cassados. Agora, em decorrência do avanço das forças populares e progressistas, Lula é eleito e reeleito presidente.
Esta conquista inédita representa uma dura derrota das classes dominantes, que nunca estiveram fora do poder central. Mas, derrotadas eleitoralmente, elas não entregam a rapadura e fazem forte pressão para enquadrar e domesticar o governo. Contam para isso com as próprias limitações e a falta de convicção de projeto do próprio presidente. Nos momentos mais tensos, como na crise política aberta em maio de 2005 com as denuncias de corrupção contra o núcleo central do governo, as elites inclusive apostaram na via golpista, procurando emplacar o impeachment do presidente. O jogo de pressão é violento e permanente.Sem fazer o jogo da elite e de sua mídia venal, os setores populares e progressistas da sociedade também precisam intensificar a pressão sobre o governo Lula, fazendo o contraponto à tática da burguesia. Só com muita pressão popular será possível viabilizar as mudanças profundas, que destravem o desenvolvimento econômico, valorizem o trabalho, promovam a inclusão social e garantam as reformas estruturais para enfrentar as gritantes desigualdades deste rico Brasil. Com isto, serão dados os passos para a superação do neoliberalismo, expressão maior da barbárie capitalista, e para a aproximação do objetivo socialista.

Janeiro de 2008 - www.vermelho.org.br